Três

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Toda vontade e determinação do mundo, não bastam para impedir que o acaso mude as regras do jogo.


Suspirei. Queria fechar os olhos e acordar no colo da minha mãe. Olhei a janela e vi o pub se afastando lentamente. Encostei a cabeça na cadeira e observei o carro. Um caderno com a capa colorida estava no banco ao meu lado. Peguei e sussurrei chamando o motorista, mas ele não ouviu. A capa era realmente bonita e me despertou curiosidade em saber o que tinha dentro. Não resisti e abri para ver se tinha um nome. Na primeira página, como se fosse o título de um trabalho de escola, estava escrito "Te Conheci na Internet". E como um ímã aquele título me arrastou de volta a vida real. Fechei o caderno e olhei pela janela. Outro suspiro. Coloquei o caderno no colo, imaginando se deveria abri-lo ou não. Aquilo não me pertencia, mas a curiosidade de ler o que aquele caderno falava, sobre o assunto que há algumas horas estava destruindo minha vida, foi maior do que o meu bom senso e boa educação.

Voltei a abrir o caderno. Dei uma rápida folheada e percebi que alguns nomes iniciavam os capítulos. Nomes de homens. A segunda página avisava o que estava descrito ali.

"Aqui começo a escrever minhas recordações. Muitos desses encontros serão parcialmente esquecidos, outros serão apenas nomes em uma lista, no entanto, mas do que meras recordações impossíveis de serem fixadas em minha mente, quero, ao reler essas histórias, saber que fui o mais feliz que pude. Que aproveitei cada momento. Se eu pudesse aconselhar alguém nesse sentido, diria para não deixar para reconhecer um bom momento apenas quando ele virar uma lembrança. O tempo é agora. A vida é já. O tempo corre apressado e às vezes a gente nem se dá conta. Pare. Respire. Olhe a sua volta. Aprecie o tanto de vida que existe fora de você e o quanto ela reflete pra dentro. Saiba reconhecer a felicidade quando ela chegar. E não perca tempo tirando selfies. As melhores lembranças não ficam gravadas em fotos, ficam guardadas no coração."

Cada palavra que eu li me dava menos vontade de entregar o caderno ao motorista. Olhei a contracapa. Tinha um nome e um número de telefone celular. Clarissa. Voltei a abrir o caderno. Clarissa não explicava as motivações de escrever aquelas histórias, mas contou que viveu todas elas. Cada capítulo era encabeçado por um nome. Era um homem que ela tinha conhecido através de um aplicativo de relacionamentos. Mais uma vez o Badoo cruzava meu caminho. Ela contava que diferente do que imaginava antes de utilizar tal aplicativo, havia pessoas das mais diferentes, com as mais diversas intenções... Me concentrei no texto.

"Não há nada de aterrorizante em ver pessoalmente, alguém que você conheceu a priori pela internet. Conheci Flávio e conversei longas horas com ele antes de vê-lo pessoalmente. Ele me contou sobre seu trabalho, sua família, namoradas... Eu contei algumas coisas também. Se eram verdades? Ora! Quantas vezes você ouve mentiras de familiares e amigos? Quantas meia-verdades você ouviu travestidas de verdades absolutas?

Conhecer alguém pela internet não é sinônimo de conhecer um mentiroso ou alguém honesto. Não é garantia de conhecer uma pessoa boa ou ruim. A internet está repleta de gente louca, se fantasiando de gente comum. Na sua rua também. Na internet você descobre pessoas fingindo ser quem não são, para conseguir o que desejam. No seu trabalho também.

A diferença é que nesse ambiente virtual as coisas acontecem na velocidade da luz. Numa intensidade ímpar. E é disso que eu preciso. Otimizar meu tempo! Ninguém tem oito horas do dia para dedicar exclusivamente a ouvir os problemas do vizinho, mas pelo Whatsapp, isso é possível. Você consegue conciliar seu dia a dia com conversas que começam às 8h da manhã e terminam às 22h da noite. Com intervalos para falar sobre trivialidades como "estou almoçando um arrumadinho de carne de sol que está uma delícia!" ou "Tá assistindo TV? Você viu que absurdo?". E três dias após um contato tão intenso, aquela pessoa que você sequer sabe que cheiro tem, se transforma em alguém importante a ponto de te fazer sentir falta de um "bom dia!" ou de perceber pela forma como escreve se tem algo errado acontecendo. E de repente você passa a gostar da pessoa que te escreve aquelas linhas, pelo que ela tem por dentro e não pela roupa que ela usa, pelo perfume importado ou pelo corpo trabalhado em treinos de academia. O julgamento deixa de ser pela aparência e passa a ser pelo conteúdo.

Claro que a internet tem seus perigos. Assim como a vida. E precaução nunca é demais. Cuidado ao expor coisas pessoais. Cuidado ao conhecer alguém. Mas esses cuidados devemos ter sempre. Na rua, na balada, no trânsito, no trabalho. O ambiente virtual é perigoso, tanto quanto o real. Entrar no carro de um carinha que você conheceu na balada? Aceitar bebida de um estranho em um bar? Conhecer pessoas é sempre um risco. Seja onde for, seja lá como esses encontros se dão. A internet não é a vilã. Algumas pessoas são. A internet é só um recurso surpreendente na busca de conhecer melhor o outro e a si mesmo."

– Izabella? – Uma voz distante invadiu meus pensamentos. – Izabella? – Levantei o rosto. O motorista me olhava com um sorriso simpático. – Chegamos.

Fechei o caderno rapidamente como se escondesse um segredo e olhei pela janela. A rodoviária estava ao meu lado. Em segundos decidi que levaria o caderno. E devolveria a dona, claro, assim que pudesse. Naquele momento estava precisando daquele caderno e das palavras daquela desconhecida.

– Quanto foi? – Perguntei, lembrando q teria de sacar dinheiro e pedindo a Deus que ele não ficasse bravo por ter de esperar.

– Não se preocupe. Na última viagem você deu dinheiro a mais.

– E quanto falta?

– Nada... Saber que você vai ficar bem, já está ótimo. – Olhei para o sujeito, com uma das sobrancelhas levantadas.

– Não vai me cobrar pela viagem?

– Fique tranquila, Izabella.

Balancei a cabeça, mas não queria ficar tentando entender o que estava acontecendo. Agradeci, desejei uma boa noite e desci do carro. Subi pela rampa que me levaria aos guichês onde as passagens eram vendidas.

Enquanto subia, avistei ao longe um casal de namorados. E achei impressionante como a felicidade do outro enraivece, quando você está triste. A moça segurava um buquê de flores e aquilo me lembrou Fábio. Ele sempre me levava flores. No início lindos ramalhetes que me deixavam absolutamente triste ao murcharem. Como se aquela flor fosse a representação do nosso amor. Constatado isso, ele passou a me trazer os mais lindos jarrinhos com orquídeas e violetas. Até percebermos juntos, a minha total incapacidade de cuidar de qualquer coisa viva. Sorri ao lembrar disso. Ele me fez prometer que nunca criaria um cãozinho. Passamos tempos fazendo piada disso. Então ele descobriu que a melhor forma de me conquistar era com chocolates. Mas nunca resistia à vontade de me ver sorrir ao receber flores.

– Moça... – A senhora do guichê me chamou com cara feia, provavelmente por que não era a primeira vez que o fazia. Me desculpei e perguntei sobre o próximo ônibus para Caruaru.

O ônibus sairia em uma hora, de lá teria que pegar um outro que iria para Santa Cruz do Capibaribe. Toritama ficava entre as duas cidades. Cerca de 3 horas de viagem. Precisava tirar Fábio da minha cabeça e olhei para o caderno. Queria descobrir o que Clarissa sabia. Algo que me desse uma pista do motivo pelo qual meu marido estava naquele aplicativo. Talvez ela soubesse.

Procurei uma cadeira, próxima ao embarque. Para chegar ao ônibus teria de descer uma escadaria. Observei as pessoas lá embaixo, entrando nos seus ônibus. Cada uma com a sua história. Histórias que eu jamais saberia, mas que poderiam ser bem piores do que a minha. Me acomodei em uma das cadeiras duras disponíveis e olhei para o caderno sob meu colo. Suspirei e voltei a abrir. O nome que encabeça a página era Bernardo.

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⏰ Last updated: Oct 16, 2018 ⏰

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ClarissaWhere stories live. Discover now