Eu não sei o que deu errado, mas agora, com a imagem avacalhada e 4% nas urnas, sinto uma vontade imensa de voltar no tempo. Tudo era mais tranquilo antigamente, antes da Lava-Jato, antes do escândalo da merenda, quando eu ainda tinha popularidade, reputação e cabelo.
Principalmente, antes dele.
Elegante, jovial, extremamente rico e ridiculamente atraente, de repente João Doria era um tucano, e eu, como bom político que era, tentei firmar um relacionamento. Me aproximei numa reunião do partido, dei dois tapinhas em suas costas e apertei sua mão:
-Então, o que está achando do PSDB?
-Ah, bom dia, governador! Eu já queria me filiar há bastante tempo, e agora estou empolgado pelo que há de vir. Claro que sou novo, tenho muito a aprender...
-É, parece que agora o Aprendiz é você.
Ele riu da minha piada sem graça, mas algo me diz que foi por educação. Não importava. O principal foi que pude ver bem mais daquele sorriso Colgate do que ele geralmente mostrava para as pessoas, apenas uma faixa estreita que aparecia por acidente quando ele comia ou falava alguma coisa. Por mais incrível que possa parecer, fora dos holofotes João Doria não gosta de mostrar os dentes.
Outra coisa que percebi rapidamente foi seu talento para a política, que nada mais era do que seu talento para os negócios usado em uma ocasião diferente. De fato, o homem falava todo o tempo como um empresário, e, mais importante, sabia fazer com que as pessoas gostassem dele. Respondia a qualquer pergunta olhando nos olhos de seu interlocutor, como se ambos fossem apenas bons amigos bebendo cerveja e falando sobre futebol. Por conta disso, muitos passaram a vê-lo como uma pérola entre os porcos, um político confiável e capaz de impulsionar mudanças num partido já desgastado aos olhos do povo. E essa popularidade não podia ser simplesmente ignorada.
Foi por isso mesmo que apoiei sua candidatura à Prefeitura de São Paulo em 2016, arranjando muitas brigas dentro de meu partido. E, como eu previ, ele foi eleito ainda no primeiro turno. Por conta do ocorrido, recebi dois convites para jantares: no primeiro, com o presidente do partido e vários patrocinadores da campanha, Doria virou Senhor Prefeito; no segundo, numa mesa para dois em um restaurante bastante desconhecido no centro da capital paulista, Senhor Prefeito virou João.
Desde aquele dia, aproveitávamos qualquer brecha para nos encontrarmos. Eu me sentia bem quando estava com ele, fosse isso num evento público ou num quarto de motel, e podia dizer que ele sentia o mesmo. Não é preciso dizer que nossa relação pública nunca mais foi a mesma: João era muito indiscreto, e me tratava como um amante em eventos públicos, em frente de câmeras e pessoas importantes, e o pior de tudo era que eu sempre o perdoava no fim do dia, quando éramos apenas nós dois.
Foram tempos felizes. É por isso que eu tenho tanta dificuldade em aceitar que acabou.
Ele traiu o partido. Ele tentou por meses e meses roubar minha vaga na corrida presidencial, me difamou publicamente e agora, como a cereja do bolo, apoiou o Bolsonaro enfaticamente, algo que eu sinto que ele queria ter feito desde o começo da campanha.
E, mesmo sentindo falta do seu corpo quente junto ao meu e do sorriso branco que ele me dava, eu sei que não posso mais ter essas coisas. Mesmo fantasiando todos os dias sobre uma última noite com Doria naquele quarto de motel que era quase uma segunda casa para nós dois, sei que nenhum de nós feriria o próprio orgulho em prol do outro.
Afinal, ególatras como nós não podem se dar ao luxo de trocar poder por felicidade.
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O Aprendiz
RomanceMais que uma história de amor, o afoito e conturbado affair de Geraldo Alckmin e João Doria é uma história de desejo, traição e, finalmente, ódio político.