Capítulo único

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Nem sempre ficava sozinha em casa, mas quando o fazia tomava uma xícara de chá preto. Importado da Índia, um dos mais caros à venda no mercado local – contaria a seus convidados se alguém um dia a visitasse. Não sabia se gostava do chá, lhe parecia mais amargo em alguns dias do que noutros. Imaginava que talvez fosse ela mesma ou a vida que não tinham nada de doce. Sentada no pequeno sofá da sala Magda suscitava pensamentos simples que eram esquecidos antes mesmo dela ser capaz de apreende-los, intercalando-os com uma indagação sobre onde estaria Afonso, seu marido. Dizia a ela que seu turno só acabava às sete, mas como poderia se certificar disso? Restava apenas tomar o chá, preferencialmente em goles grandes, observando dispersa o relógio amarelado, injustamente envelhecido pelo próprio tempo que marcava.

Às vezes a pergunta mudava, questionava se ele não a estaria traindo. Quando seu íntimo tendia ao sim, tentava se convencer de que sua imaginação fugia do controle, pois não era importante nem rica, logo a paixão mútua seria o único motivo para terem casado. Quando não, cerrava as sobrancelhas, inconformada em não achar razão para um marido tão ausente, inclinando-se então a, na próxima indagação, crer-se atraiçoada. Passava, portanto, a tarde inteira na inebriante rotina, o olhar distante como ela mesma, a mão a se mover apenas para levar a xícara à boca e a perna balançando intermitente, mas se perguntassem, inquieta era a perna, não ela.

Naquele final de tarde foi necessário que o sol se pusesse para que Magda despertasse do transe. O chá havia esfriado sem ter sido bebido e sentia frio nas extremidades do corpo. – Onde estou com a cabeça? – a voz baixa, torpe como se estivesse a dias sem falar. A resposta à pergunta veio incômoda e branda, sentia-se mais distante de si mesma que do marido. Seu despertar, portanto, abrangeu uma parte de si esquecida há tanto tempo que lhe pareceu invasora.

Observou a mesa posta, a comida servida esfriando, era noite e Afonso não havia chegado. Faz tempo que Pedro não janta em casa, – pensou – ou seria Afonso? Preferiu não se esforçar para lembrar o nome dele, pois chegaria tarde mesmo assim.

Magda caminhou até o quarto e se deparou com o grande espelho que sua mãe lhe dera de presente de casamento, estava na família há gerações. A imagem nele, contudo, lhe parecia artificial, então removeu aquilo que lhe era acessório. Pegou um pano e esfregou o rosto com força para retirar a falsidade da maquiagem, jogou a camisa de lado e soltou o sutiã apertado, removeu os sapatos dos pés machucados e tirou o cinto que espremia seu abdômen. Nua era incapaz de reconhecer-se.

Contudo, à medida que o tempo avançava lento, mas persistente, conseguia enxergar cada vez mais a si mesma. Havia engordado, os seios caíram e a pele adquirira uma aparência rígida, dando lugar às rugas, mas ainda era Magda. Não conseguia compreender como envelhecera tanto em apenas dois anos, talvez fosse porque as tardes durassem uma vida inteira. Não sabia se havia esquecido de viver ou apenas sido esquecida.

Estendeu a mão e pegou na gaveta do armário uma foto sua antiga e a beijou com todo o amor restante. O tempo não havia parado, mas Magda ficou estática, pois havia aceitado amar o passado. A mesa estava posta, o relógio amarelava e o chá estava gelado quando foi possível ouvir o barulho do molho de chaves balançando enquanto a porta da sala abria.

— Mãe? – sem resposta. Após procurar um pouco, parou confuso à porta do quarto, fitando a mãe nua que sorria para a foto. Mãe? – de novo.

— Estou morta, resta apenas o que vê. – Respondeu, olhando para o filho com os olhos repletos de vazio e saudade, antes de cair no chão.

Gabriel, o filho, conseguiu chamar uma ambulância, mas Magda já estava morta. Se soubesse que a mãe estava mal de saúde, teria a visitado mais. Sentiu-se culpado por não estar ao lado dela após o falecimento do marido. Caminhou pela casa repleta de xícaras de chá velho, Magda não havia tomado um gole sequer. A comida na mesa estava podre, porém posta, como se esperasse Afonso para jantar, na cozinha a louça empilhada e mais comida estragada.

Alguns dias depois recebeu pelo correio o resultado da autópsia, confirmando que a Magda estava morta há dias. Mas não importava a data na qual a mãe morreu, apenas o motivo. No mesmo dia sua mulher, ao final da tarde, foi falar com ele.

— Amor, até hoje não chegou o resultado da autópsia?

— Ah, chegou sim, foi ataque cardíaco, mas ela não sentiu nada, ele disse.

— Pelo menos ela não sofreu então.

— Sim, pelo menos isso. Você tá bem?

— Estou sim, pode ficar tranquila.

— Vou pôr a mesa, vai querer chá hoje também?

— Vou sim, por favor.

— Que mania estranha essa sua, de começar a tomar chá. – Gabriel não respondeu a esposa até ela voltar com o chá.

— Meu bem, sabia que é importado da Índia?

— E o mais caro à venda no mercado aqui perto, você vai repetir isso todo dia? – A esposa se irritava, mas Gabriel ria, redimia-se.

A xícara de cháOnde histórias criam vida. Descubra agora