Infância

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|•Do meu pescoço gotejava um líquido indistinguível, os meus olhos com vendas excessivamente apertadas. Senti um arrepio percorrer por todo o meu corpo. Um barulho de algo a cair afluiu. De repente tudo acabou, um ar pairou sobre meus curtos cabelos. Meus dias de morte teriam chegado ao fim?•|

O Som da chuva forte invadiu o silêncio da sala. Estava sentada na poltrona junto à janela a observar a chuva. As crianças do bairro que costumavam brincar no jardim frente à minha casa abrigaram-se em suas casas. Sinto falta dessa época. Lembro-me ainda daquele dia em que tive o meu primeiro namorado. Coisa de criança. Cresci e deixei de me importar com isso. Mas sinto falta da minha inocente infância. Aquela fase da ilusão, de pensar que o mundo é maravilhoso. Será que talvez as pessoas é que complicam a vida?

Levantei-me da poltrona e observei o relógio antigo na parede. Lembro-me imediatamente do meu avô que costumava passar horas o observando, atentamente, focado, sentado na cadeira de baloiço localizada em frente à lareira. Uma vez perguntei-lhe o motivo de tanto observar aquele relógio velho e ele olhou para mim e apenas sorriu. Sempre o classifiquei como um objeto inútil mas agora recorda-me de tanto.

Sou acordada de meus pensamentos com um chamado.

- Jane! O jantar está pronto!

- Oh, claro, irei já mãe.

Sentei-me à mesa, agradeço pela comida, e o meu pai ligou as notícias. "Homem dá 13 facadas na sua mulher enquanto ela dorme". O mundo está perdido. Considero uma ofensa para as cobras compará-las a algumas pessoas.

- Quando vai viajar?

-Oh, amanhã de manhãzinha. Estou pensando em levar o Dalin comigo.

- Claro! Mas vais ter com quem deixar?

- Ele é o meu melhor amigo, juntamente com a minha câmera. Não irá incomodar.

Iria viajar. Precisava. Era como um extra para o meu trabalho. Conhecer e poder fotografar novas paisagens faria muito bem a meu emprego. O que seria uma fotógrafa sem coisas para fotografar? Irei para o Algarve fotografar alguns pontos turísticos. Pensei em sair de Portugal mas não queria deixar o meu cachorro a cuidados de ninguém. Ele é a minha companhia em todos os momentos.

Acabei de comer, pedi permissão e levantei-me.

Meus pais moram nesta casa desde que meus avós morreram. Na verdade, a minha avó morreu de tanto lutar contra o Alzheimer e o meu avô adoeceu com isso e, uns meses depois, acabou por morrer também. Eles eram tão ligados. Tão fofos. Após a sua morte deixaram esta casa a meus pais, que cuidaram deles até seus últimos dias de vida.

Sempre mantive uma boa relação com os meus avós, todavia, confesso que gostava mais do mistério e bondade do meu avô. Ele sempre me ensinou os verdadeiros valores da vida. Mostrou-me que a realidade não é concreta. Que cada um tem a sua realidade, logo não há uma definição certa ou errada.

Ele não era velho, ele era um sábio, um idoso. Velho é quem perde o espírito de criança, quem perde a virtude de mudar a cada dia.

A chuva continuava. Fui em direção ao meu quarto. Comecei a assistir uma série intrigante. Uma série aterrorizante que me deu calafrios. Um assassino bárbaro que fazia manequins de suas vítimas, como se fossem uma fácil massa de moldar. Era cruel. Desliguei a televisão e fui dormir. Amanhã será um novo dia. Um dia cheio de felicidades, presumo.

Ouço um barulho estranho. Vindo da cozinha. Como se algo houvesse caído ou partido. Dalin também estava a latir. Levanto-me rapidamente e vou ver o que havia acontecido. A janela está aberta. Não me lembro de deixar nada aberto. Sinto um leve arrepio de medo. Observo mais detalhadamente em volta e vejo o chão apenas um pouco molhado da chuva que pingava com a janela aberta. Fecho a janela. Era estranho. Fui ao quarto dos meus pais. Eles estavam a dormir, tranquilamente. Talvez tenha sido somente minha impressão. Regressei ao meu quarto e voltei a dormir ainda com um pouco de receio. Estava com uma sensação ruim. Deve ser da série que comecei a ver. Acabo adormecendo novamente. Amanhã será um novo dia.

Últimos dias de MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora