A Trilha dos Pássaros Mortos

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..."De novo? Isso é mesmo necessário?", pergunto entediado. "Sim. Mais uma vez, Jonathan.", o homem sentado na cadeira responde de imediato e então eu dou início à narrativa enquanto o som do lápis na prancheta que ele utiliza aos poucos desaparece.

O episódio aconteceu três meses depois que nos mudamos da fazenda do falecido patrão do meu pai, seu Antônio como a gente costumava chama-lo. Pelo que entendi na época, meus pais haviam juntado as economias para investir em terra boa e assim começar o próprio negócio. Então, eles compraram um sítio às margens de uma rodovia federal e a ideia era dar início ao próprio plantio e usar a camionete velha que seu Antônio doou ainda em vida a fim de levarem o que sobrasse para a cidade e obter algum lucro. Como já te disse das outras vezes, sou filho único e, quando aconteceu, eu nem tinha idade suficiente para ajudar no serviço mais pesado.

Como o senhor meu pai, Raimundo Ferreira, disse na época; a terra é boa, muito boa meu filho. De fato, nos primeiros meses eles estavam muito animados, tudo parecia caminhar bem. Mas, algum dia desses primeiros meses, foi na verdade a última vez que os vi felizes. Eu nunca me afastei muito do sítio e ali aprendi que o tédio para uma criança pode trazer consequências pavorosas. Por isso, sempre que eu acabava o trabalho na lavoura, subia a elevação íngreme bem atrás da nossa casa. Aquele caminho, alguns quilômetros afrente, findava numa acentuada ribanceira — se assim posso dizer — que dava vista para o desbocamento de um rio que mais parecia um lago vez que olhando ali de cima a água parecia sempre calma. Lembro-me que pelo caminho eu costumava coletar algumas pedras ou lixo mesmo de qualquer espécie para atirar lá do alto e fazer disso minha diversão. Foi nessa brincadeira que, por duas vezes, durante o percurso de pedras, árvores secas e grandes troncos podres eu encontrei pássaros negros caídos. O mais engraçado é que, curioso do jeito que sou, quando fui investigar aquele animal imóvel, nos dois casos eles estavam sem as asas e eu parava ali, olhando para o céu imaginando como eles poderiam chegar ali sem voar, afinal eles não tinham asas e ao pegar eles na mão pareciam mutilados, dava até para sentir a marca em relevo como uma cicatriz no lugar removido, era um aspecto muito estranho.

Na terceira vez que vi o episódio se repetir, eu resolvi interromper minha diversão e correr de volta para o sítio levando comigo o cadáver daquela criatura para que meu pai desse uma olhada e me explicasse como aquilo era possível. Lembro-me dele ter olhado o bicho uma vez, depois duas e enfim encarar minha mãe, dona Vitória Ferreira, com ar de preocupação. Como eu já havia dito, eles eram do campo, experientes, mas mesmo assim aquilo os intrigou e hoje percebo que naquele dia o que eles pensaram era que eu quem havia feito aquilo com o bicho. De qualquer maneira, nos dias seguintes os dois não pareciam se importar com meus relatos e eu tampouco em dizer que o fato passou a se repetir com mais frequência. A essa altura, encontrava os pássaros cada vez mais próximos de nossa casa e só parou no dia que eu encontrei aquela garota, coincidentemente nosso último dia no sítio.

Na manhã do dia que saímos de lá, antes do encontro, o assunto dos pássaros voltou à mesa durante o desjejum, minha mãe discutia preocupada e muito apreensiva sobre a janela da sala despedaçada, apontando para algo enrolado num jornal ali perto, na área de serviço. Acompanhei tudo enquanto comia, observando meu pai, descrente das palavras dela, desenrolar o jornal; e foi então que eu pude ver que se tratava de outro pássaro morto, também sem as asas. Eu não entendi direito na hora, mas hoje tenho certeza que força natural alguma poderia ter arremessado aquele animal a ponto de destruir a janela da sala, tampouco a criatura poderia perder as asas em pleno voo e cair do céu como um kamikaze. Contudo, eu sabia que, se eu seguisse a trilha de pássaros mortos encontraria uma resposta. Com a tensão no ar, minha mãe, do jeito dela, obrigou meu pai a pegar a camionete, sair para a rodovia e ligar para o vendedor da terra exigindo respostas sobre o terreno. Enquanto isso, ela ficaria incumbida do reparo da janela.

A Trilha dos Pássaros MortosWhere stories live. Discover now