Verde lagarto amarelo

354 6 0
                                    

Ele entrou no seu passo macio, sem ruído, não chegava a ser felino: apenas um andar discreto. Polido.

– Rodolfo! Onde está você?… Dormindo? – perguntou quando me viu levantar da poltrona e vestir a camisa. Baixou o tom de voz. – Está sozinho?

Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho.

– Estava lendo. – Dostoievski? Fechei o livro. Nada lhe escapava.

– Queria lembrar uma certa passagem… Só que está quente demais, acho que este é o dia mais quente desde que começou o verão.

Ele deixou a pasta na cadeira e abriu o pacote de uvas, trouxera um pacote de uvas roxas.

– Estavam tão maduras, olha só que beleza – disse tirando

um cacho e balançando-o no ar como um pêndulo. – Prova! Está uma delícia.

Com um gesto casual, atirei meu paletó em cima da mesa, cobrindo o rascunho de um conto que começara naquela manhã. – Já é tempo de uvas? – perguntei colhendo um bago. Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa, sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto.

Trouxe também uma coisa… Mostro depois.

Encarei-o. Quando ele sorria ficava menino outra vez. Seus olhos tinham o mesmo brilho úmido das uvas.

Que coisa?

Mas se eu já disse que é surpresa! Mostro depois.

Não insisti. Conhecia de sobra aquela antiga expressão com que vinha me anunciar que tinha algo escondido no bolso ou debaixo do travesseiro. Acabava sempre por me oferecer seu tesouro: a maçã, o cigarro, a revistinha pornográfica, o pacote de suspiros, mas antes ficava algum tempo me rondando com esse ar de secreto deslumbramento.

Vou fazer um café – anunciei.

Só se for para você, tomei há pouco na esquina.

Era mentira. O bar da esquina era imundo e para ele o café fazia parte de um ritual nobre, limpo. Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar.

Na esquina?

Quando comprei as uvas…

Meu irmão. O cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua. E aquela cor nas pupilas.

Mamãe achava que seus olhos eram cor-de-violeta. Cor-de-violeta?

Foi o que ela disse à tia Débora, meu filho Eduardo tem os olhos cor-de-violeta…

Ele tirou o paletó. Afrouxou a gravata. Como é que são olhos cor-de-violeta? Cor-de-violeta – eu respondi abrindo o fogareiro.

Contos de Lygia Fagundes Telles Onde histórias criam vida. Descubra agora