Dias que passaram...

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( Ouçam a música) 


Me lembro como se fosse hoje o dia que tudo começou a mudar na minha vida, era primavera, mas na nossa cidade as flores não mudavam de tom, nem haviam feiras de comidas festivas, apenas a velha rotina de todas as outras estações. O que mudava um pouco era o estado deplorável da minha mãe, não me julgue por falar dela assim, mas é única palavra que encontrava para descrevê-la hoje em dia. Nós distanciamos muito durante os anos, tivemos o nosso jeito singular de ligar com a dor. E hoje seria mais um desses dias de dor. 

- Levanta, anda, levanta - dizia a voz distante em minha mente, meu corpo é sacolejando violentamente até ser jogado para fora da cama. - Anda, levanta e vai fazer o teu serviço. 

- Ah..não me sinto bem - minhas pernas fraquejavam, as mãos tremiam com a lembrança da noite anterior, era assim quando minha mãe bebia, sempre algo muito ruim acontecia. 

- O que ? Está mentindo de novo, Emma ? - dispara puxando com força o meu cabelo. 

- Ahh, não, não estou mentindo, eu juro - reprimi a vontade de chorar. 

-  Você me cansa.. -  me joga no chão e só ai percebo o aroma floral, e as roupas nada discretas, eram caras demais para o pouco salário que ganhava no jornal. Temia pela escolhas de minha mãe, sentia saudades de quem ela um dia foi. - Ah, e não se esqueça, arrume Louis para a escola e dê um jeito nessa casa, não me espere para o jantar. - diz pegando a copia das chaves de casa de cima da cômoda, me deixando para trás novamente.  

- Quando isso vai acabar ? - perguntava para o reflexo no espelho, e aquela angústia voltava, era como se me consumisse aos poucos. Abraçava meus joelhos como um movimento involuntário.

- Emma ? - um "pingo" de gente aparece na porta do quarto. Seus olhos azulados, combinava com sua pele clara. 

- Pequeno príncipe ! - tento esconder minha tristeza atrás de um sorriso. - anda, precisamos correr para você não se atrasar para a escola.

- Ah, não... Não quero ir para aquele lugar.. - cruzas os braços e forma um lindo bico. Seu pijama estava tão velho que já se via pequenos buracos em toda a sua extensão.

- Ah é ? - me levanto arqueando a sobrancelha. - veremos.. - isso o faz rir e sair correndo.

Tento sorrir, mas aquela tristeza ainda estava ali, tentava buscar forças respirando bem fundo.
...

Depois de correr pela casa e conseguir fazer Louis tomar banho e se vestir para a escola, vou para o quarto me arrumar. O deixo tomando café e me dirijo ao banheiro.
Tinha vergonha de mim mesma, no meu próprio corpo carregava as marcas do que mais odiava, os ataques de raiva que minha mãe tinha. 


Após um banho rápido, visto uma camisa simples com um jeans surrado, calço um tênis e deixo meu cabelo amendoado amarrado em um coque.  Pego minha mochila e a de Louis, deixando as duas encostadas no sofá.

- Já terminou ? -  ele apenas  acena com a cabeça. Pego a louça, lavo e ponho para secar no aparador.

- Não vai comer ? - aceno que sim, pego uma maçã.

- Vamos, vai acabar chegando atrasado. - ele corre até sua mochila e depois para a porta.

Seria um longo dia...

Após essa parte feliz do dia, viria a frustrante e desanimadora, após deixar Louis, não iria para a escola como todas as garotas da minha idade.
Passo em frente a escola pública do bairro, e vejo todas as garotas vestidas com seu uniforme singular, sorridentes entrando pela porta de ferro. Seus pais sorriam em reciprocidade, um orgulho notável.
Mas isso não era pra mim, minha realidade era outra, não que eu fosse a única a passar por isso. No entanto quando passamos por momentos difíceis nos tornamos meio egoístas, pelo menos era o meu caso.

Caminho para o lado oposto, até virar a esquina, onde encontro meu trabalho. Abro a porta e dou de cara com Albert, o gerente, e ao seu lado, Frida, a sua fiel ajudante.

- Ah, a desocupada chegou -  fala Frida e seu sorriso vibrante que chegava a dar medo.  - Não está atrasada ?  Ou acha que a comida vai se servir sozinha ?

- Frida ! - Albert a censurava, de longe ele parecia mal, mas era só chegar perto para ver que não era bem assim.   - Deixe a menina se arrumar, hoje teremos muitos clientes.

- Com licença - fecho a cara e vou para o quarto dos empregados, onde tinha um cômodo que chamavam de "armário" para guardar os pertences, ao lado,  em um cabide tinha o uniforme laranja e branco, com os dizeres em preto " Lanchonete Downtown".

Após me trocar, procuro limpar as mesas e atender os poucos  clientes que chegavam cansados procurando  por uma simples xícara de café. Esse trabalho estava sendo um refúgio nos últimos 5 meses, após meu pai nos deixar ano passado, ficamos um tanto quanto perdidos. E imaginar que a 5 anos atrás eu era a princesinha da mamãe.

.....

O tempo passava devagar. Os clientes aumentavam, todos atrás da famosa torta de amora da Miss Luci, a falecida esposa de Albert, que foi a primeira dona da lanchonete.

- Garçonete ?  - um rapaz magrelo, de cabelo escuro me chama na mesa de canto perto da janela.

- Bom dia, o que vai pedir ? - forço um sorriso.

- Quero um pedaço de torta e uma xícara de chá - olho para ele e depois anoto o pedido.

- Desculpe, não servimos chá, mas temos um café delicioso. - percebo seus olhares para a cicatriz no braço, e rapidamente puxo a manga da camisa para esconder.  - Vai ser só a torta ?

- Me traga o café - seu sorriso era acolhedor.

- Certo - retiro o pedido e guardo o bloquinho no bolso da frente, entregando o papel no balcão perto da entrada da cozinha.

No final do dia, será que me perguntaria quando poderia ter um dia assim novamente ? 

"onde está, pois, a minha esperança? Sim, a minha esperança, quem a poderá ver?'
Jó 17:15

Emma - Um começo no fimOnde histórias criam vida. Descubra agora