Mortos não se calam

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O brilho do sol que entrava por debaixo da porta do banheiro haveria de ganhar matizes cinzentos transformando aquele crepúsculo em uma dolorosa cicatriz. Do outro lado da porta, amarrada em um gancho no teto, uma corda envolvia o pescoço de mamãe e forçava sua cabeça contra o tórax. De sua boca, escapavam miasmas — palavra que eu só conhecia por ter sido sorteado para estudar As Flores do Mal de Baudelaire no colégio. Ao lado daquele antigo bidê sem uso, como uma pintura de natureza morta, jazia também um violino.

A partir daquele dia, as cordas daquele violino que eu herdara de mamãe passariam a solfejar notas escuras, de uma existência angustiante, cujo único brilho advinha ironicamente das músicas que carregavam uma tonalidade mais fúnebre. Assim, a música russa produzida no início do século XX era um pequeno bálsamo para meu coração; um rito evocativo de toda a poética da morte em suas diversas faces, desde as mais sentimentais até as mais brutais. De tanto fustigar aquelas cordas com o peso da morte de mamãe, tornei-me aos 16 anos de idade, o principal intérprete do concerto de violino de Shostakovich. Contudo, tenho horror aos palcos. Tenho comigo que os fantasmas de todas as eras habitam aquelas instalações.

Não tive como fugir. Muitos foram os pedidos do público, dos meus agentes, da gravadora, para que eu mostrasse as mil facetas que conheço da morte através de um concerto de violino no palco do Teatro Municipal de São Paulo.

Meu pai combinou que iria comigo ao concerto, para que eu acalmasse os meus nervos e pudesse fazer o meu melhor. Ele era uma pessoa incrivelmente sensível e sempre me apoiou nos estudos de música, embora fosse uma pessoa reservada. Ele tinha algumas manias: fazia a barba todos os dias pela manhã e lia todos os jornais durante o café. Para isso, acordava invariavelmente às 5 da manhã, fizesse chuva ou sol.

Na noite anterior ao concerto, uma tensão enorme começou a corroer minhas entranhas surrupiando meu sono. Fui a sala acompanhar a leitura matinal de meu pai. O telefone de casa, que não costumava tocar, tocou; meu pai que era meio enrolado com tecnologia, sem querer apertou o botão do viva voz.

"General, desculpe-me incomodá-lo em vossa residência em um horário tão inapropriado, mas é um assunto urgente. Estamos com ratos no arquivo geral do departamento de informação e uma prova importante está próxima de saciar a fome do roedor".

"Entendi Capitão V. O Major X está a par do ocorrido? Deu algum encaminhamento ao caso ou estamos no fio da navalha?"

"General, o Major X disse que como o arquivo é de um dossiê muito delicado e importante, somente vossa excelência poderia resolver esse caso".

"Entendido. Logo estarei aí".

Com uma grande destreza, o General tirou o pijama rapidamente, colocou o uniforme, o quepe, arrumou a sua pasta e ainda na porta de nosso imenso apartamento na Avenida Higienópolis disse:

"Filho, não vou conseguir levar-te ao concerto, vou fazer o possível para terminar todos os assuntos urgentes, mas de antemão enviarei um carro oficial para que você não tenha problemas para ir ao Teatro Municipal".

Acenei com a cabeça que sim, bati continência como sempre fazia em nossa despedida, mas ainda assim fiquei triste por não poder contar com a companhia do meu pai. Bem antes do combinado, um carro oficial do exército estava na porta do nosso prédio com um soldado que carregava as ordens de meu pai.

"Senhor Júlio, vossa excelência o General K. pediu que eu levasse o senhor em segurança ao Teatro Municipal, no entanto, teremos que fazer uma pausa no edifício do departamento de informação do exército. Lá, há um presente endereçado ao senhor".

Meus dedos começaram a tremer e num dia de estreia essa não era uma boa notícia. O que seria o tal presente, eu não fazia ideia, mas o fato de não contar com meu pai esta noite e de ter que fazer uma parada não programada fez com que o meu medo de palco submergisse das profundezas e se transformasse numa louca obsessão por roer unhas.

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