sobre a cidade e o amor

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Autora: Isabella Dias Fonseca


PLOT

Tema: Relacionamento homoafetivo

Número de personagens e a personalidade de um deles: Dois personagens adolescentes.

Personagem principal: Tímida, introspectiva, insegura, afetuosa, sensível e leitora ávida de romances.

Local onde se passa a história: Brasil/Rio de Janeiro

Ambientação: Década de 20

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O cheiro da comida que Joana preparava invadia os cômodos da casa sem o menor pudor, aumentando ainda mais minha fome. Marília caminhava de um lado para o outro trazendo porcelanas e enfeites em suas mãos, e as empregadas, por sua vez, se divertiam com a ansiedade da patroa. Os almoços que minha mulher preparava para os amigos mais próximos era um ritual conhecido por todos do bairro, e eu, ciente do que aquilo implicava, sabia que o melhor a fazer era subir as escadas e me recolher no escritório até que os convidados começassem a chegar.

Fechei a porta de madeira, caminhei até a vitrola e abaixei a agulha dando início a um blues baixo. Preso em alguns pensamentos decidi que talvez fosse um bom momento para olhar aquela caixa que a muito estava evitando. Lembranças especificas rondavam meus pensamentos há alguns dias, e já era hora de trazer-lhes a vida. Na segunda gaveta da escrivaninha, à esquerda, de baixo para cima, eu guardei detalhes da década de 20 e de um Rio de Janeiro que um dia foram tudo para mim.

As poucas fotos que eu possuía me levavam de volta ao período de mudanças do país. Os movimentos políticos e culturais, a industrialização, e a onda de imigrações que trazia as populações do campo para cidade. Essa última trouxe consigo aquele que seria tão importante em minha vida.

Rafael era um boêmio nato, de pele morena, e cabelos lisos e pretos que contrastavam com seus olhos cor de âmbar. Vivia sempre com um sorriso torto no rosto, e que servia de paradoxo para minha personalidade opaca de filho único tímido. Ele chamando atenção por onde passava, e eu evitando pessoas devido a insegurança. Ele por vezes incompassível, e eu sensível em demasiado. Todas essas diferenças, porém, não foram suficientes para impedir que em um colégio carioca dois garotos se apaixonassem completamente.

A aproximação inimaginável se deu por meio dos estudos. Eu, leitor ávido e bom aluno, participava do projeto de reforço da escola, e era monitor de algumas matérias. Rafael prestes a reprovar mais um ano foi obrigado a se inscrever em algumas aulas. Quatro vezes por semana, uma sala pequena, alguns conteúdos acadêmicos e sentimentos que até hoje me deixam confusos. Nosso primeiro beijo naquela tarde chuvosa de quinta foi, depois do nascimento dos meus filhos, o momento mais importante da minha vida.

Depois disso os momentos eram vários. Rafael passou a frequentar mais a biblioteca, e me mostrou as vantagens da falsa privacidade, que só as altas prateleiras podiam nos proporcionar. Eu passei a frequentar os eventos esportivos da escola só para vê-lo jogar. Nos fins de semana nosso cenário era muito maior e incluía as manhas na praia, passeio de bondinho -com direito a beijos quando não havia mais ninguém-, e idas à Lapa. O Rio construía seu desenvolvimento e eu minhas memórias.

Foram dois anos de um amor que parecia não caber um mim. Nesse meio tempo falsas namoradas vieram e se foram, mas nossa relação permanecia. Aos poucos descobrimos a linguagem da alma um do outro, e no final desse período eu já era fluente na dele.

A agulha arranhou o disco, e a advertência da música, que veio em forma de chiado, me trouxe de volta a realidade.

A realidade é um disco de blues arranhado.

Em agosto do último ano em que passamos juntos Rafael se mostrava inconformado com o governo, suas ideias revolucionarias ficavam cada vez mais radicais, e toda sua energia jovem parecia se voltar para a política. Era uma terça de sol e ele me disse que ficará sabendo de um grupo de jovens que estavam se juntando no interior do país com objetivo de marchar pelo território pregando reformas políticas e sociais e combatendo o governo. Rafael partiu e se juntou ao que ficaria conhecido pouco tempo depois como Coluna Prestes. O movimento fracassou e eu nunca mais voltei a ver ou ter notícias do homem que amei.

Senti uma gota solitária escorrer pelo rosto e soltei uma risada irônica. Quem diria que ainda existiria lagrima para chorar o sentimento, que por tanto tempo, me fez escorrer rios?

Tampei a caixa em minhas mãos e fiquei encarando o vazio do cômodo que estava a minha frente até que Marília batesse à porta me chamando para descer. Depositei todas aquelas lembranças no lugar em que elas se encontravam inicialmente, tranquei a gaveta e meu coração. Me levantei e fui até minha mulher, passando o braço pelos seus ombros.

- Será um almoço incrível.

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