Aline morreu e chegou na entrada do inferno. Não entendia porquê, mas chegou. A última coisa que se lembrava era que estava se maquiando enquanto dirigia, mas não foi culpa dela pois o carro estava parado. A culpa foi do caminhão de melancias sem freio na outra direção.
Olhou em volta, mas tudo que via era uma espécie de entrada de escritório com uma moça na portaria. O inferno era limpo, e havia várias pessoas sentadas em cadeiras do lado com cara de tédio. Estavam esperando.
- Oi, o que aconteceu? Por quê vim parar aqui? - perguntou para a recepcionista que mascava um chiclete de boca aberta. E fazendo barulho.
- Você morreu, e aqui é o inferno. - respondeu indiferente.
- Inferno? Mas o que eu fiz pra merecer vir pra cá? - perguntou já despontando uma lágrima.
A recepcionista agora sim olha para Aline, de cima a baixo. Como que pra manter a calma, respira fundo. Passam alguns segundos, ela diz:
- Mais uma que acredita na propaganda da oposição! Olha meu bem, aqui é bem diferente do que falam lá em vida.
- Mas como assim? - perguntou Aline, perplexa.
- Olha bem, aqui não é um mar de fogo com cheiro de enxofre igual dizem. Você vai ver.
- Não é a punição eterna?
- Não, só aguarde sua vez para a entrevista e escolha de setor, ok? - disse a recepcionista, entregando uma senha para Aline.
- Aline sentou-se ao lado dos outros, mas não puxou assunto. - estava deslocada ainda.
Aguardou horas, muito tempo mesmo. Indescritivelmente muito tempo, enquanto a recepcionista chamada as senhas, uma por uma. As pessoas que já estavam na frente iam levantando uma a uma, algumas entravam numa porta outras voltavam e sentavam novamente. Novas pessoas entravam, falavam na recepção e sentavam quietas para esperar. Enfim chegou sua vez.
- Obrigado, já não aguentava mais esperar! - exclamou Aline para a recepcionista.
Estranhou que a recepcionista agora deu um sorriso de canto de boca e pediu:
- Preciso do seu formulário B-3 preenchido.
- Mas como? Por quê não me falou antes? - perguntou Aline muito chateada.
- Preciso do formulário preenchido, pode pegar aqui no balcão e preencher, mas vou ter que chamar a próxima senha e te dar outra.
Aline resignada e com medo do que fazia (afinal, ali era o inferno e foi criada pra ter medo) pegou o formulário e foi preencher com uma caneta emprestada da recepção.
Um tempo inominavelmente longo depois de espera, enfim sua nova senha foi chamada. A recepcionista pegou o formulário, leu por cima e o devolveu:
- Você precisa preencher em letra de forma, não pode usar cursiva! - a recepcionista impaciente exclamou, entregando um novo formulário em branco e uma nova senha.
Aline se conteve, afinal não sabia o que podiam fazer com ela. Resignada, pegou o formulário novo, a senha e foi sentar.
Um tempo tão absurdo que não tinha nome depois, finalmente pela terceira vez sua senha foi chamada. Aline foi decidida à recepcionista e disse:
- Tem como me liberar pra entrar logo? - quase gritando, mas ainda se contendo de medo.
Vagarosamente a recepcionista conferiu o formulário, aprovou o que estava escrito e disse:
- Certo, está liberada. Pode passar pela porta.
Aline com um pouco de desconfiança foi até a porta, abriu e passou. Mais uma recepção, com outra recepcionista. Olhou pra trás e não havia mais a porta pela qual havia passado.
O inferno era uma repartição pública.
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Inferno e outros contos
Short StoryContos, crônicas e causos sobre a vida após a morte, antes do nascimento e tudo que existe no meio