Chegança

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O mês era novembro e os primeiros pingos de chuva, apressavam os passos nas ruas ainda escuras de uma manhã sem sol. Protegida apenas pelo livro que segurava sob a cabeça, ela alcançava o fim da Avenida Central, caminhando com certa pressa, pois dentro em pouco estaria atrasada para tomar o bonde. Seu destino era o Colégio Pitágoras, onde fora aceita nova professora.

Parada de frente ao prédio escolar, ela guardou o livro na sacola, endireitou sua coluna e adentrou o recinto sentindo as borboletas no estômago assanharem.

- Se acalme! - pensou - e imediatamente assumiu a postura altiva que aquelas mulheres intelectualmente atraentes cultivam.

Passando pelos corredores, buscou identificar algum rosto conhecido, mas não encontrou nenhum. Só se viam pequenas vidas alegres correndo para lá e para cá e em alguns cantos, grupos adolescentes em animada conversação. Quando se viu diante da porta onde se lia ''Direção'' e embaixo '' Vittório Lacerda'', bateu três vezes e aguardou.

Um homem aparentando quarenta anos apareceu, sorriu e disse:

- Você deve ser Ana Lira! Entre por favor.

O gabinete do diretor era uma sala agradavelmente bem decorada, fresca e espaçosa. Não fosse Ana Lira habituada a frequentar grandes salas como aquela, não guardaria a boa postura e tão logo seus olhos estariam imersos em contemplação. Parada de frente ao sofá, Ana Lira virou-se para o homem e ele fez um gesto com a mão convidando-lhe a sentar-se.

- Fique à vontade para se servir de café ou chá - disse Vittório iniciando a conversa - prove desses biscoitos e esqueça todos os que já comeu antes.

- Irei aceitar um biscoito somente à título de curiosidade- foi dizendo Ana Lira- não costumo ter fome muito cedo.

O homem sorriu, serviu a si mesmo o café e ficou algo pensativo, fitando a moça à sua frente.

- Me conte de onde vem sua aspiração à docência em Literatura - disse em seguida à Ana Lira - não estou habituado a contratar pessoas muito jovens e de família tão nobre quanto à sua.

- Meu pai lia e criava muitas histórias para mim. Minha mãe incentivava a mim e as minha irmãs música, teatro e principalmente, a leitura de obras famosas. O sonho deles sempre foi que uma de nós se inclinasse à arte e se entregasse a ela tanto quanto eles. De sorte, todas nós procuramos agrada-los à nossa maneira.

Vittório sentiu-se irremediavelmente simpatizado com a jovem Ana Lira. Contou-lhe de sua formação em História e filosofia e afirmou que, assim como ela , teve a idéia de criar um Liceu, que concretizou-se o Colégio Pitágoras, jovem e inclinado à tendências paternas.

- Pois muito bem Ana Lira, a vaga que temos em Literatura é sua. Irei pessoalmente lhe apresentar nossas instalações.

Ana Lira quase não conteve a emoção que as palavras de Vittório lhe causaram. Colocou-se de pé e agradeceu uma, duas vezes, a confiança pelo cargo.

Ia saindo da sala quando, erguendo seu olhar do diretor e virando o rosto um pouco à esquerda, se viu diante de uma das telas que mais amava: Os jogadores de cartas, do Cézanne. Ana Lira caminhou até o quadro e, sem se dar conta, entrou no estado contemplativo que não aprovava ter em situações formais. Vittório, percebendo o interesse da jovem pelo quadro, levantou-se da poltrona e caminhou na direção dela. Ia dizer alguma coisa sobre a pintura, mas o perfume adocicado de Ana Lira o fez atentar-se somente à respiração e esquecer-se da fala.

Ana LiraOnde histórias criam vida. Descubra agora