Faltava pouco para às quarto da tarde quando Ana Lira despediu-se de suas colegas professoras e partiu para tomar o bonde de volta para casa. Tendo em vista que já se faziam um ano que Ana Lira fazia aquele mesmo trajeto, aquele 9 de janeiro apresentou uma movimentação estranha no bondinho: ele estava muito mais lotado que o normal. Ela sentiu-se apreensiva em meio à toda aquela gente estranha e desejava estar em casa o mais rápido possível.
No pouco que conseguiu fitar aquelas pessoas, observou que eles se vestiam de forma diferente da sua,tinham a cor da pele diferente da dela e além disso, alguns traziam listras vermelhas em seus rostos.
- O que será que significa isso?- pensou assustada, baixando imediatamente os olhos.
Ela permaneceu encarando a palma das mãos durante toda a viagem. Na véspera de seus vinte e quatro anos, Ana Lira nunca havia estado rodeada por tantos desconhecidos antes. Sua expressão àquela altura denunciava puro pânico, uma vez que mesmo no ponto de decida do bonde, continuara cercada. E a multidão triplicou-se à medida que se aproximava a Avenida Central.
Foi quando alguém começou a gritar as seguintes palavras :
'' Meu camaradas! Estamos nos reunindo para lembrar que naquele 9 de janeiro de 1905, a luta operária ganhou força e mesmo diante das dificuldades, ABRIU AS PORTAS DA REVOLUÇÃO!!! ''
Em meio aos aplausos e gritos de apoio, Ana Lira ficara ainda mais aflita. Ela já sabia o que a multidão significava e tudo que ela mais queria naquele momento era estar longe dali.
- Uma manifestação, aqui no Brasil, relacionada ao domingo sangrento que houve há sete anos atrás na Rússia? não pode ser. - pensou Ana lira perplexa frente à clarevidência do fato.
A multidão atingiu seu ponto de concentração frente à Biblioteca Nacional, no coração da Av Central. Não é preciso dizer que Ana Lira fora forçada a caminhar lado a lado com aquela gente que, na visão dela, estava prestes a causar uma desgraça.
As pernas de Ana Lira tremiam, suas mãos pingavam o mais frio suor e seu coração batia descompassadamente. Ela não tinha outra opção que não fosse seguir o fluxo de pessoas e ouvir o que eles tinham a dizer. Quando finalmente o aglomerado parou de andar, Ana Lira paralisou. Pessoas que se posicionavam de modo que pareceram estar à frente da organização pediam silêncio.
- Silêncio! Silêncio! O poeta Murilo Mendes irá declamar! Silêncio!
Diante dos olhos de todos surgiu o que Ana Lira conhecia como '' um homem de cor'' - maneira sutil de se referir aos negros - à quem a multidão quando reconheceu ovacionou e derramou-se em aplausos. Enquanto todos silenciavam, ele recitou:
Minha alma tem a forma de meu corpo:
Mas como é afinal meu corpo?
Eu nunca exatamente o vi...
As vezes será uma esfera,
Outras vezes pirâmide.
Quantas coisas aparentes vi...
Vi famílias inteiras dependuradas dum cabide
Que dialogavam fuzis.
Vi uma bailarina erguendo na ponta dos pés
um teatro com mil colunas
Vi o sol negro,
Vi, vejo, tantas coisas vi.
Vi se movendo meu corpo,
Mas não, até hoje,
A forma e a fôrma.
Mais um derrame de aplausos devotos foram dedicados ao Poeta na Avenida. Ana Lira, ali petrificada, sentiu as lágrimas escorrerem quentes em suas faces rubras. Ela sentia imensa vergonha de si e do próprio preconceito. Queria ir até aquele homem, abraça-lo e pedir perdão por tudo que pensara até aquele ponto, onde aquela gente e aquele homem ganharam um novo significado pra ela.
A essa altura, como era de se esperar, a cavalaria se aproximava e ia formando um cerco, pronta para atirar em qualquer um que desobedecesse suas ordens de '' dispersar''.
De repente, no meio da conversação enfurecida do povo, ouvem-se dois tiros que soaram no alto, vindos da porta do Teatro municipal, que dão início à confusão total.