Isso não é verdade!

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Pinça o papel com os dedos capturando-o no ar. A turbulência danificou a folha velha porém ainda é legível. Cola fita adesiva por todo o papel a fim de evitar mais danos. Enquanto isso  se questiona:

Outros sobreviventes? Será que é isso mesmo? Não sei  de onde ele veio nem como parou aqui. Foi tudo tão rápido… Mas de algum lugar ele veio. Uma criança assim não era nem nascida durante a  grande mudança. Com certeza há mais sobreviventes.

Olha para o papel infantilmente plastificado e converte com base em sua memória a distância em tempo de caminhada. Julga ser meio dia andando sem descanso.

Dá pra enfrentar, mas… Pra quê? Já passei por isso. Não adianta, o fim é sempre o mesmo: solidão. Uma solidão com o peso da morte de todos que já conheci. Eu sou a praga aqui, aonde eu vou carrego desgraça junto.

Seu pensamento é interrompido por uma voz feminina que se expressa em sua própria mente.

Isso não é verdade!

A voz é de sua esposa. Ele sabe que ela iria querer que ele tentasse. Ele sabe que ela não iria deixar ele desistir. E com a força da memória de cada um que morreu por causa da Grande Mudança, Matheus não vai sucumbir.

Reúne todos itens essenciais em uma mochila. O suficiente para poucos dias. Mas é noite, frio e ele não descansou. É melhor esperar o sol.

Após deixar tudo pronto para sua partida, toma banho e repousa-se na cama. Uma dor de cabeça e pensamentos gritantes o impedem que descanse por completo. Apesar disso a fadiga física imobiliza seu corpo.

Aos poucos certas imagens do passado revisitam  seu cérebro. Sem controle elas vêm em um fluxo cada vez mais intenso até engloba-lo completamente.

Imerso em suas lembranças em uma sala de estar bem iluminada segurando um telefone em seu ouvido e sentindo uma terrível dor que não sabe apontar uma origem. Acabou de receber a notícia de que seus pais tinham sido atingidos pelas consequências das Coisas e pereceram. A ligação já tinha sido cessada, mas se mantinha naquela posição. O único movimento eram os das lágrimas.

Quebrando bruscamente a inércia do lugar a porta principal é aberta com pressa por uma mulher bem vestida com feições de extrema preocupação. Ela corta a sala até  Matheus e em um abraço violento repleto do mais puro afeto interrompe o congelamento. Ela diz:

Eu soube, meu amor! Eu soube! Estou aqui! Me abraça!

Ainda atordoado aceita o conforto da esposa. Eles sentam entrelaçados no chão. Seus corações e respiração vão aos poucos entrando em sincronia. Em meio a soluços Matheus balbucia:

Por que? Por que logo agora? Eu não tenho forças. Eu não tenho como. Estou caindo há um bom tempo e nem as terapias e os remédios parecem ajudar. E agora isso? Eu já sou um parasita em sua vida, apenas uma fonte de preocupação que consome seus esforços sem ser útil em nada. E agora meus pais se vão como se algo quisesse me puxar cada vez mais pras profundezas do nada. Eu não tenho força nenhuma para ir contra.

Sua esposa absorve tais palavras como símbolo do tormento que perturba  seu amado. Como sentindo o frio que penitencia sua alma. Põe suas palmas delicadamente envolvendo o rosto do marido, direcionando sua visão para si e em um tom calmo e sábio fala:

Ei! Olha pra mim. Olha em meus olhos e escute bem. Serão muitos os momentos como esse. Não parece reconfortante e não é, pois a vida não se importa com o bem-estar de ninguém. Mas existem momentos maravilhosos que valem cada segundo de espera. Se não resistir às etapas obscuras não viverá as de luz. Sei que o escuro quando intenso não te permite ver esperança alguma. Parece que ficará preso no breu eternamente. Mas isso não é verdade! Você vai acreditar  que não existe mais caminho pra luz ou que ela não vale mais a pena ou até que não possui mais visão. Mas não é verdade!

Antes de nos conhecermos eu estava num momento horrível. Existir era motivo pra uma dor imensa e eu queria dar um fim nisso. Eu abri a caixa de remédios de minha mãe, tomei um punhado de comprimidos e fui dormir. Acordei com uma dor forte na cabeça e no estômago. Não lembro de muita coisa, mas sei que fiquei um tempo internada no hospital. E hoje eu fico pensando que se eu tivesse encerrado minha vida alí eu não teria feito faculdade, não teria conseguido o emprego que sempre desejei,  não teria te conhecido, não teria me casado contigo, não teria a nossa filhinha, não teria tantos sorrisos, tantos abraços… eu não teria sido feliz de novo. Então, quando a escuridão te disser que a luz não existe escute minha voz dizendo “Isso não é verdade!”. Quero que tenha força tá bem? E eu independente de onde esteja, estarei contigo pra te ajudar. Vem cá, me abraça mais forte! Eu te amo.

Ele põe seus olhos nos ombros da esposa, aperta o abraço e responde em prantos:

Eu te amo.

Ao abrir os olhos novamente o presente toma conta de sua visão. Já é dia. A vela derreteu completamente e se apagou. A porta ainda estava aberta permitindo a passagem de vento e luz. Seus olhos desmancham-se em lágrimas ainda em consequência da imersiva lembrança. O vento pedula a corda ainda presa ao teto lembrando-o do duelo da noite anterior.

Levanta-se, estica-se, faz uma breve refeição, acende uma vela, leva ao banheiro, lava o rosto, escova os dentes, toma banho, põe uma roupa, revisa os itens da mochila, verifica o mapa, põe a mochila e para em pé no centro do quarto. Observa cada detalhe e cada detalhe lhe mostra uma história. Lembra da construção dos cômodos e móveis, das personagens e instruções dos livros. Lentamente se volta à porta de saída que emoldura uma paisagem morta, escura e cinza. Sai da minúscula casa mirando a imagem da cidade abandonada. Seu destino é o sentido oposto, vira-se e segue. Aos poucos cidade é encoberta pelos montes e logo depois o quarto sofre o mesmo. Guiando-se por um rastro de estrada riscado no chão negro, segue em frente. Eventualmente volta o olhar para o caminho já percorrido, mas nunca para de seguir em frente.

FIM

MATHEUSOnde histórias criam vida. Descubra agora