O dia amanhecia como outro qualquer. Os raios de sol já entravam desinibidos pela janela entreaberta e as moscodontes já zuniam ensurdecedoramente pelos ares. "Deuses, 15 para as 10!".
Como de costume, estava bastante atrasado para o trabalho. Mesmo assim, mantinha-me na cama sentido aquele banho de sol revigorante. Podia sentir o estremecer de minhas escamas, movendo-se independentemente como se rebolassem vagarosamente a se aconchegar umas sobre as outras, enquanto meu sangue aumentava o pulso e expandia minha carne.
Deitado feito uma lagartixa, e não poderia ser diferente, fito o teto e penso em nada de muito especial. Ou melhor, pensava em nada, mesmo, até sentir uma leve gratidão por ter nascido nestes tempos: "bendita evolução, bendita luzinhas brancas...". E assim começava a recordar da semana passada, do presente que ganhei de...
— Meu filho? Olha, não vou nem me dar ao trabalho de perguntar... Levanta dessa cama menino! Mas que coisa, nem parece que já tem...
— O mãezinha querida, bom dia para a senhora também! O dia tá uma beleza não?
— Olha seu moleque, não venha lagartixar para cima de sua mãe. Você já tem 27 ecdises e tem que se ater aos seus compromissos! Vá já para o trabalho... anda! Ou irei até aí e, bem, você sabe né?
— ....
— Não tô te ouvindo...
— Sei mãe, eu sei... vai correr atrás de mim até meu rabo cair....
— Você era tão pequenino (falava enquanto ria)... bom, tenho que ir, depois nos falamos, beijo.
— Beijo mãe, beijo...
Depois desta sutil interrupção materna, retomei à lembrança que a pouco desenhava, agora um tanto menos eufórico. Havia, na semana passada, ganhado um presente dessa mesma senhora lagartixa que me interrompia: uma mutação genética recém lançada que permitia a telepatia, umas das coisas mais legais que já tinha visto. Claro, às vezes ocorria esse tipo de "pop up", vindo do nada e com intuito algum, ou bem intencionado, acontece que a percepção que importa é sempre a do objeto da ação. De toda forma, a telepatia sim foi um presente carregado de intenções. Estava há tempos andando meio amuado, meio sem brio. Não estava cabisbaixo ou depressivo, mas me faltava aquele norte, você sabe...
Enfim, tomo aquele impulso que se inicia por um prender da respiração, seguido por um "Eh" e que termina com um "Hmmm" quando o movimento é finalizado. Deparo-me sentado na cama e contemplo aquele ponto cativo na parede que todos possuem e que encaram ao acordar. Retenho-me por uns segundos e, em seguida, passo a língua, de forma vagarosa e determinada, da boca à testa. Limpo os olhos, desamasso o rosto e ergo-me da cama.
Vestido, pego minha valise e a caneta que vai preguiçosamente ao bolso da frente da camisa. Verifico se fechei as janelas, "malditos moscodontes e os nacos de merda que trazem em suas patas", checo a minha imagem no espelho, "nada mal...", e abro a porta, iniciando oficialmente mais um dia de minha vida.
Ainda hoje sinto uma leve vontade de rir ao encarar as movimentadas ruas da cidade pelas manhãs. Não que exista algum motivo em especial e longe de ser um sorriso jocoso, mas é engraçado perceber-se como integrante de uma sociedade tão diversa: vejo crocodilianos e suas bocas gigantes, desengonçadas; cobranóides ziguezagueando por aí, sempre aparentando cochichar algo a alguém; camaleonídeos distraídos, atentos a tudo e sempre a tropeçar; calangolinos a correr pelas pontas dos dedos, apressados; e, claro, lagartíxenos como eu, um pouco mais assustados do que deveriam. E o mais engraçado é ver que todos interagem como se nada fosse diferente. A naturalidade do processo me comove e meu corpo confunde comoção com alegria. Sim, deve ser isso.
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De repentiliano
Short StoryUm conto sobre evolução, redes sociais e destino, sob o espectro do absurdo. Acaso fosse verdade, o que faríamos?