Capítulo 17

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Devo ter cochilado, porque acordei no meio da manhã com alguém cutucando meu pé. Entreabri um olho para descobrir um soldadinho tentando se esconder dentro de meu sapato, mas ele se prendeu nos cadarços. Tinha as pernas juntas e rígidas, e era meio estranho, com uns vinte centímetros de altura e usando trajes militares. Observei-o tentar se livrar por um instante e depois ficar rígido — um brinquedo mecânico cuja corda terminara. Desamarrei o sapato para soltar o soldado, então o virei de costas em busca da chave para lhe dar corda outra vez. Não encontrei nenhuma. Olhando de perto, era algo estranho, de aspecto tosco, que tinha uma bola de barro como cabeça e uma marca de dedo para assinalar sua face.

— Traga-o aqui! — Ouvi alguém gritar do outro lado do jardim. Era Enoch, abri um sorriso, peguei o soldado de barro e saí andando. Havia outros dispostos em torno do garoto — toda uma coleção de soldadinhos de corda, cambaleando de um lado para o outro, como robôs defeituosos. Quando me aproximei, o que estava em minha mão começou a se contorcer, quase como se tentasse escapar. A corda dele não tinha acabado. Coloquei-o junto dos outros e limpei a sujeira de barro das minhas calças.

-- Quando você voltou? -- eu perguntei -- Por que não foi me acordar?

-- Não faz muito tempo que voltei não, e não te acordei porque tava dormindo tão bonitinho que deixei. Desculpe se ele a perturbou — Enoch disse, conduzindo o soldado que eu

devolverá até os outros. — Sabe, eles têm ideias próprias. Ainda não estão bem

treinados. Eu só os fiz na semana passada. -- Enquanto ele falava eu admirava seu sotaque londrino. Os círculos negros cadavéricos que circundam seus olhos como os de um guaxinim o deixavam mais bonito ainda, e seu macacão, o mesmo que usava nas fotos que meu avô me mostrou, como um uniforme que nunca tirasse, tinha marcas de lama e terra. Não fosse seu rosto rechonchudo, ele poderia ser um limpador de chaminés tirado de Oliver Twist.

O homem de barro que eu devolverá a ele saiu andando outra vez, então Enoch o jogou de qualquer jeito junto com os outros. Eles pareciam totalmente confusos, batendo uns nos outros como se estivessem muito nervosos.

— Lutem, seus frescos! — ele ordenou aos homens de barro errantes, e nesse momento eu me dei conta de que os outros não estavam apenas se esbarrando, mas se socando e se chutando. O homem de barro que tinha fugido, porém, não estava interessado em lutar e, quando ele começou a se afastar outra vez, Enoch o agarrou e arrancou suas pernas.

— É isso o que acontece com desertores do meu exército! — gritou, e jogou o aleijado na grama, onde ficou se contorcendo de modo grotesco enquanto os outros caíam sobre ele.

— Você trata todos os seus brinquedos assim?! -- falei chocada pela brutalidade.

— Por quê? Está com pena deles?

— Claro. Devia estar?

— Não. Eles não estariam vivos se não fosse por mim. Você tem o coração muito mole.

— Você não deveria fazer isso com eles! Por que você é tão frio assim? -- disse brava.

— Tá, bom desculpa, mas você não precisava ter ficado tão brava né!

— E você não devia ter feito isso com o boneco...

— Desculpa, mas você fica tão linda quando ta brava -- disse ele se aproximando pra me abraçar.

— Poxa, com esses comentários você tira toda a credibilidade da bronca -- eu falei ja menos brava. Ele me abraçou e ficamos assim, só abraçados por um momento.

— Ah, uma coisa que eu queria te perguntar desde o primeiro dia que você chegou mas não tive oportunidade ainda, será que você pode me mostrar suas peculiaridades? -- disse ele ansioso.

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