Vou desmoronar

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 Yixing olhou pela janela em ruínas e agarrou o batente enquanto assistia a tempestade desaguar do lado de fora. Estava sem camisa e suas asas ocupavam quase todo e espaço do estreito cômodo, mas ele não se importou, não agora, não naquela noite.

Fechou os olhos sentindo a dor da perda, a dor do desespero, a dor da angustia. Ele que evitou sentimentos por mais de sete mil anos desde que foi expulso do lado de seu criador e se escondeu de todos, entre os humanos apenas esperando que seus três consortes nascessem... Esperou sete mil anos, longos e silenciosos milênios e agora as marcas se apagavam das sua pele porque nunca foi real. Elas nunca foram reais... Eram obras de um deus maldito que nem naquele mundo vivia...

Tantos anos em vão, tantos anos acreditando em uma mentira, ele queria morrer e matar, ele queria sangue e vingança, mas não teria nenhum dos dois... Não naquela noite...

Espremeu seus olhos e ofegou. O chamavam de Dângelo, e esse era seu nome original, mas não o usava entre os homens... Não usava pois odiava todas as conotações que vinham juntos àquele nome...

Agora era Yixing... E queimava em angustia enquanto os últimos resquícios e traços dos nomes desapareciam de sua pele marmórea e fria...

Ele agarrou mais forte a superfície de madeira debaixo de seus dedos e as esmigalhou... Ele estava desmoronado... Desmoronado e não havia ninguém para ampará-lo. Nunca, houve, jamais haveria...

Ele chorou e suas lágrimas rubras caiam por sua pele branca, manchando a cor de sua vida, branco no branco, fria, morta, atemporal... Sua pele era reflexo de si e seu reflexo era aterrorizador.

Temeu abrir os olhos e ver a si mesmo daquela forma, a forma pura de um anjo caído ainda com suas asas intactas prontas a serem arrancadas violentamente e então ele iria descer, descer para a terra e virar pedra para sempre, o mesmo destino da única pessoa que amou, porém jamais o amou de volta. Rubiel.

Ele amou tantas fêmeas e se apaixonou violentamente por uma amazona e Yixing assistiu tudo das sombras, sangrando por aquele homem que nunca o viu além de um irmão de criação divina. Sua esperança tinha sido os seus consortes futuros... E suas esperanças foram apenas uma ilusão... O que havia para ele agora além de vazio?

Vazio e pedra... Pedra para sempre...

Abriu as pálpebras contra as probabilidades de postergar por mais tempo e saiu das ruínas deixando que a chuva cobrisse seu corpo, suas asas e lavassem suas lágrimas suicidas.

Não havia esperanças, sem lar, nem destino, nem nada. Era o último anjo original, e ia deixar finalmente aquele mundo congelante e dormir... Como seria dormir? O que Rubiel sentiu quando queimou suas asas no sol inclemente e deitou-se para sempre em sua tumba soterrada tão profundamente... O que ele sentiu? Seria tão excruciante quanto imaginava? Talvez fosse.

Dângelo se manteve intocado como nenhum outro dos seus. Sem ceder a desejos mortais, sem ceder nunca. Ele seria de seus consortes, mas agora seria de ninguém. Todos seus desejos esmigalhados... Era irônico e trágico, mas o que não era trágico para criaturas tão antigas que deviam já estar todas destruídas de fato?

Caiu de joelhos diante de sua capela, afinal sempre havia uma para cada um deles, tocou seus dedos no chão enlameado e fez sua última prece antes de abrir as asas, tirar o punhal da sua bota e fechar os olhos para dar o primeiro golpe... Que foi contido por outra pele fria.

Ergueu os olhos aflitos para ver uma sombra que tomou forma assustadoramente real de quem deveria jamais estar ali...

— R-Rubiel...?

— Como pode pensar em arrancar asas tão belas dessa forma?

— N-não é possível...

— Você me chamou Dângelo, eu vim... Mas não uso mais esse nome, ele morreu junto com minha falsa morte, agora sou Yifan... Venha, levante-se.

E o anjo que pensou estar entre os mortos há tantos milênios o ergueu e o tomou nos braços enrodilhando sua cintura em um abraço aconchegante que o destruiu por dentro...

— Quanto tempo? Porque não me procurou...?

— Eu não estava aqui, mas agora voltei, voltei porque certa bruxa me disse que ia cometer esse ato tolo... – E o loiro por quem era loucamente apaixonado afagou seu rosto delicadamente – Perdoa-me por tudo o que fiz cego e alheio ao que sentia. Eu vou tentar reparar... Mas nunca mais pense em arrancar uma parte tão importante de você... É o último intacto de nós, mantenha-se assim...

— V-você vai ficar?

— Sim, eu ficarei com você agora, para sempre... É uma promessa...

— Rubiel...

— Yifan, Yixing, Yifan... Agora venha, vamos sair da chuva e enxugar suas belas asas... Depois quero saber tudo o que houve e então vamos partir daqui para minha casa nas montanhas do norte. Ficaremos juntos para sempre e eu nunca mais irei te deixar sozinho, eu juro...

E Yixing desabou sobre os braços do outro em um alivio que beirava a sanidade... Insanidade... Então foi erguido no colo do maior e carregado de volta para as ruinas onde um carro estava estacionado.

— Eu vou te levar para casa. Agora eu voltei.

E ele soube ali, diante do olhar profundamente negro do primeiro anjo que sim, agora finalmente, quase no fim da sua esperança desesperançada, haveria um lar para si.

O Último AnjoOnde histórias criam vida. Descubra agora