A queda

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— Lulu, se controle e pare de saltar no banco.

A voz da minha irmã do meio soou um pouco brava e eu me aquietei. Mas era difícil, por que eu estava em estado eufórico, estava extasiada e muito animada, seria meu primeiro ritual, e se eu passasse na prova, faria parte efetiva do Coven da família e isso era tudo o que eu mais queria desde que me conhecia por gente. Eu poderia comemorar os Sabbats e Esbats com todos os adultos, eu seria uma jovem adulta também, eu faria parte do círculo.

Eu sou uma bruxa, não no sentido pejorativo tão difundido no mundo preconceituoso, não, sou uma bruxa de uma família de bruxas praticantes, nossos ancestrais vieram do pedaço de terra de galegos portugueses nortenhos, descendentes da Galícia, filhos longínquos dos gaélicos, mulheres e homens que tinham intimidade com as divindades do mundo. Esse tipo de bruxa. Eu respeitava e honrava meu passado, meus ancestrais e tinha sido agraciada, assim como cada membro da família, com um dom e embora ele me colocasse as vezes em situações constrangedoras, eu amava quem era.

Contudo não era uma alienada no mundo, eu ia a escola como os outros, gostava de internet, música, shopping, eram fã de diversos ídolos teens e também vivia uma vida comum, como uma típica Paulistana, apenas me reunia com a família nos dias dos ritos da roda do ano, onde celebrávamos a vida, honrávamos os deuses e nossos ancestrais.

Antes apenas celebrava do lado de fora do círculo por que ainda não tinha alcançado a idade de conhecer os demais mistérios e pertencer ao Coven, só que esse dia tinha chegado, e seria a noite seguinte. Por isso estávamos indo para a cabana da floresta, ao extremo norte do país, onde nossa primeira antepassada chegou naquela terra fértil e sagrada, guardada por tribos milenares e pediu para ficar. A cabana ainda era a mesma de quase cinco séculos. E todos os grandes ritos e admissão para o Coven eram realizados lá.

— Falta muito, Mônica?

— Não Lu, estamos quase lá.

Minha irmã dirigia o jipe há quase três dias, nós praticamente atravessamos o país até aquele canto isolado, de difícil acesso selvagem e perigoso. Atravessamos rios, floresta e descampados. Se minha família não tivesse um radar de sexto sentido até as sombras da Serra do Aracá, nem mesmo nós conseguiríamos alcançar o pequeno sitio da família cravada entre a robusta floresta e o lago de pedras brancas formada por três cacheiras que desaguavam nele e então corriam até o horizonte para desaguar no rio.

Um lugar isolado no extremo do Amazonas, uma terra que nossos antepassados reconheciam como sagrada, com caminhos misteriosos que levavam até Machu Picchu, que segundo a lenda seria a segunda cidade dos deuses antigos, a primeira estava perdida ali, em algum lugar daquela imensidão misteriosa de montanhas, florestas e rios. E onde eu estava para ser aceita entre os meus, se passasse em minha tarefa, claro.

— Sabe o que pode ser, Mô?

— É a milésima vez que pergunta, Lulu e eu vou repetir, não sei, para cada um é uma tarefa nova, é o oráculo quem define, não nós. Mas você tem o dom das línguas, creio que pode ser algo para testá-la. Mas é só um palpite.

Ela tinha razão, aquele era um bom palpite, eu tinha herdado de uma antiga bisavó, o dom de poder falar em todas as línguas, para mim era tudo a mesma coisa, eu ouvia e passava a falar no idioma de quem falasse comigo, era algo natural e às vezes me colocava em situações difíceis, com explicar que uma garota de dezesseis anos conhecia tantos idiomas diferentes? Até mesmo podia entender algumas das linguagens não humanas. Gatos principalmente, e répteis.

Dentro da minha família era aceito, comum. Mas para o mundo era uma aberração, assim aprendi cedo a me controlar. Eu os escutava, mas nunca respondia, fui diagnosticada na escola com déficit de atenção. Como as pessoas normais poderiam entender que eu só escutava os gatos conversarem? Não entenderiam. Mas nunca reclamei, dons eram dados para serem usados, era uma graça e uma honra e em minha opinião poderia ser uma profissão, afinal tradutores eram bem remunerados. E era divertido!

3º FilhaOnde histórias criam vida. Descubra agora