Filosofia no escuro

16 1 0
                                    

Doyoung /On

O penúltimo desejo do meu avô era ser cremado. De uns tempos para cá, ele passava o dia inteiro de cama, olhando para o teto ou escavando a parede com as unhas. Nos raros momentos de lucidez, agarrava a minha mão com o que lhe restara de forças e me dizia que não queria atravessar a eternidade debaixo da terra, tudo menos isso! Negava-se a ficar trancafiado dentro de um caixão abafado e escuro; só de pensar nessa hipótese, disparava a espirrar. Era inútil lembrar que os mortos não sentem alergia. Não largava a minha mão enquanto eu não lhe prometia, jurava, dava a minha palavra de honra que seu corpo seria cremado. Arriscava, então, o último pedido:

— Quero que as minhas cinzas sejam jogadas sobre um canteiro
de rosas.

Na minha opinião, tanto faz apodrecer no subsolo ou virar carvão. O que realmente importa é saber pra onde vai a alma, a aura, o espírito, a essência, a chama ou que nome tenha o chip abstrato que faz o olho brilhar e deixa a pele arrepiada. Mas vô JeongHan também se preocupava com o corpo, e, pensando bem, talvez não seja justo condená-lo por esta vaidade de última hora.

Depois do último pedido, ele soltava um sorriso nostálgico e me perguntava pela trocentésima sétima vez se eu sabia que as rosas eram
as flores preferidas do vô SeungCheol. Dizia, então, que naquele tempo ninguém ficava com ninguém. Ficar, no coreano antigo, não passava de um verbo intransitivo. Se um cara estava a fim de uma garota (ou de outro cara), era obrigado a cumprir um ritual que começava com uma troca de olhares à distância (isso tinha o nome de flerte, eu consultei o dicionário) e só chegava ao beijo na boca no fim de uma maratona que durava semanas e, em casos mais graves, meses.

Parte importante do ritual era a serenata, hoje praticamente extinta, mas houve um tempo em que o sonho de consumo dos garotos era aprender violão para tocar debaixo da janela da namorada ou namorado em noite de Lua cheia. Nem todos, porém, entendiam de música ou levavam a sério esse papo de romantismo. Meu avô, por exemplo, achava que amor à primeira vista, alma gêmea e felicidade eterna eram os ingredientes da fórmula de um xarope enjoativo, com terríveis efeitos colaterais, que os comerciantes empurravam nos consumidores goela abaixo com o propósito de aumentar o lucro na venda de flores, jóias e bombons.

A opinião de vô SeungCheol só mudou depois que ele se envolveu num acidente.

Flashback On

Atrasado para o trabalho, saiu correndo atrás de um bonde e trombou com um garoto que atravessava a rua. Ele estava voltando da escola e caiu perto do meio-fio, esparramando na calçada o conteúdo da bolsa. Do cotovelo esfolado não saiu uma gota de sangue, mas o estudante fez cara de dor e perguntou ao apressadinho por que ele não prestava atenção por onde andava.

SeungCheol não respondeu. Ajoelhou-se no meio da rua para recolher os livros e cadernos e então descobriu um nome - JeongHan - na etiqueta da capa do Atlas. Ficou olhando para o garoto com um sorriso lunático. Ele não via onde estava a graça e, de braços cruzados, esperou que ele tivesse a humildade de pelo menos lhe pedir desculpas.

Mas o coitado parecia aflito demais para agir de acordo com regras. Depois de reunir e devolver todo o material escolar, SeungCheol respirou fundo para ganhar coragem e finalmente conseguiu dizer alguma coisa:

- Quer se casar comigo, JeongHan?

Lá estava ele, de joelhos, em pleno centro da cidade, sob o sol indiscreto do meio-dia, declarando-se a um desconhecido. Mas e daí? Era como se de repente tivesse perdido o medo do ridículo. Contrariando todas as suas teorias, admitiu que a paixão era mais que uma metáfora comercial e baixou a cabeça como um condenado que se prepara para ouvir a sentença.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: May 13, 2020 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

•『 Powerful 』•Onde histórias criam vida. Descubra agora