Quando finalmente consegui lidar minimamente com a perda do meu avô, outras coisas surgiram. Vieram mais mudanças. A minha mãe e o Paulo decidiram em conjunto que estava na altura de viverem juntos, e assim foi, eles podiam ter tido mais calma, mas não. A minha vida a partir daí deu uma reviravolta enorme. Eu, a minha mãe e o meu irmão começamo-nos a mudar para a casa de Paulo. Era uma casa grande, moderna, tinha pouco tempo de ser construída e era luminosa, o tipo de casa que maior parte das pessoas não se importava de ter, menos eu, o problema não era a casa em si, eram os motivos que me trouxeram a ela. Claro que se vivesse ali com os meu país juntos não me importava, mas não era o caso. Com a mudança da minha casa para a casa de Paulo acabei por perder muita da minha privacidade, tive de começar a partilhar o quarto com Patrícia que para mim ainda era como se fosse uma estranha. Tive de acatar novas regras e partilhar a atenção da minha mãe, para uma miúda de 11 anos isso é horrível.
Eu sempre pedi aos meu pais um irmão mais novo, não esperava tê-lo depois da separação dos meus pais, mas tive. Passados uns anos de estarmos a viver todos juntos a minha mãe engravidou. Eu sempre me fechei no meu mundo, tenho e sempre tive um mundo muito próprio, não sei explicar concretamente, dentro desse mundo estavam os cortes que fazia no meu corpo, queria transformar a dor psicológica em dor física, não sentia dor quando me cortava, a dor que sentia emocionalmente era tão forte que eu nem dava conta da dor física. Isso não resolvia os meus problemas, apenas serviam para me acalmar, o que ganhava em troca com isso eram apenas marcas no meu corpo que iam ficar para sempre, mas por algum motivo eu continuava a fazê-los. Posso pegar no exemplo do tabaco, as pessoas que fumam têm a noção de que isso faz mal, mas no entanto continuam apesar de quererem parar, isso tem uma explicação, chama-se vicio. Mesmo com o nascimento do Martim, uma pessoa que conseguiu alegrar um bocadinho a minha vida nessa altura, isso não mudou.
Ouve uma altura que me me deixei de cortar, prometi a mim mesma que não o ia fazer mais, pegava muitas vezes na lâmina, arranhava-me com as minhas unhas, mas consegui ser mais forte. Mas para ser sincera, tive uma pequena ajuda, que não era melhor e reconheço isso, usei-a para substituir os cortes que fazia, droga. Juntei-me a um grupo de amigos que o faziam e fui pelo mesmo caminho que eles durante muito tempo. A droga fazia-me esquecer dos problemas por algumas horas, a raiva que sentia por Paulo e pelos filhos, do facto dos meus pais se terem separado e da tristeza que sentia pela minha mãe ter-me mudado a vida por completo sem pensar bem se isso era o melhor para mim realmente. Nessas poucas horas ria e pensava em coisas que ninguém no seu perfeito juízo era capaz de pensar. Mas as drogas não são um bom caminho para ninguém, eu acabei por perceber isso. Comecei a perceber que eu já não era eu por causa das drogas. Acreditem, não era uma pessoa melhor. Era uma pessoa dependente de uma coisa tão pequena e que fazia tão mal. Estive dentro deste mundo dos 13 aos 16 anos. Podem julgar, não faz mal, como vos disse, a minha cabeça faz questão de me avisar todos os dias de uma coisa.
As-pessoas-não-te-vão-perceber.
Para conseguir largar as drogas, entrei para o judo, mantinha-me ocupada, e quando treinava esquecia-me dos problemas, bem, tem dias que não.Não demorei tempo até fazer grandes amizades no judo. Lá dentro é como se fôssemos todos irmãos. Quando lá entrei tinha as atenções todas viradas para mim, carne nova, como se costuma dizer. Isso incomodava-me imenso, eu não gostava de chamar a atenção.
Uma mente fechada vai pensar: "então mas se ela se mutilava não era suposto querer atenção?"
Se eu, ou outra pessoa qualquer que se mutila porque sofre mesmo, quiséssemos chamar a atenção de alguém cortávamo-nos em frente das pessoas, eu garanto que nunca ninguém me viu a fazer um corte, podiam ver a marca que ficava depois, mas apenas por descuido meu porque sempre tentei escondê-las. Eu só queria que as pessoas parassem com essa mentalidade inútil, que não os leva a lado nenhum, até podemos não concordar com o que os outros fazem, temos o nosso direito, mas o ser humano não faz nada por acaso, há sempre um motivo para qualquer ação e são esses motivos que temos de procurar para nos entendermos uns aos outros. É uma coisa tão simples de se fazer.
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Silêncio Profundo.
RandomIleana é uma adolescente com 17 anos. A sua vida deu uma volta enorme a uma dada altura da sua vida, como consequência dos atos de outras pessoas, Ileana teve de aprender a viver com duas coisas, depressão e mutilação. Transformou-se num coração de...