Meu querido Orfeu,
O trabalho está sendo árduo por aqui. Tenho que acordar muitíssimo cedo todas as manhãs para alimentar os cisnes de Afrodite e amarrar bem os cestos nas carruagens para que estas centenas de cartas sejam entregues, sãs e salvas, nos respectivos endereços. Pela tarde, vou aos estábulos de Eros lavar os seus cavalos, polir as selas, pentear as crinas, libertá-los nos campos para que se exercitem. Eros gosta de seus cavalos bem jeitosinhos, e quem sou eu para reclamar? Quanto à noite, ela é só minha, você sabe. Afrodite e Eros me dão estas horas de descanso só para mim, nesta cabana pequena e aconchegante que construí com a ajuda do velho Perseu. Você não o reconheceria mais se pensasse em como eu o descrevia anteriormente, ele está quebrado e corcunda, sua visão deteriora como uma gota de tinta aquarela pingando numa bacia de água. Nem tão rápido e nem tão lento, espalha-se como se espalham os dias do calendário.
Sempre quis uma cabana modesta, com cerquinhas adjacentes, um quintal espaçoso onde pudesse adubar e crescer minha hortinha. Janelas em todos os quatro cantos, para que haja sol em qualquer hora do dia, derramando-se no piso de madeira da cozinha, da sala e do meu quarto. Do que seria o nosso quarto. Nada de tinta, somente verniz e um telhado suficientemente forte para aguentar as tempestades. Alaranjados, retangulares, firmes sobre o teto. Pela tarde, você precisa ver, minha casa vira um lar do âmbar.
Aqui neste campo onde tenho o luxo de uma macieira bem ao lado leste do meu lar, posso me sentar à noite e assistir a escuridão precoce chegar e parir as constelações que parecem pular para fora daquelas colinas ao sul. Eu sempre te falei o quanto tinha vontade de me aventurar por lá, mas o trabalho me deixa tão cansado que, ao fim do dia, tudo o que quero fazer é preparar o meu jantar, observar se não há nenhuma praga ameaçando minha horta e, finalmente, me banhar, labutar e continuar escrevendo.
Nos dias em que não estou tão preso a essa rotina, decido descer a ladeira para conversar com os vizinhos no bairro ao norte, trocar meus tomates e minhas cebolas e minha salsa por queijo de cabra, leite e ovos, as maçãs eu deixo de graça para as crianças. A macieira já estava ali quando me mudei, então tenho para mim que seria injusto cobrar pelas maçãs. E elas crescem o ano inteiro, Orfeu. Não apenas numa determinada época, mas o ano inteiro, sem que eu me dê ao trabalho de cuidar desta árvore. Afrodite recentemente me contou que essa macieira fora plantada por uma bruxa muita velha, muito antiga, que obtinha para si todos os segredos milenares da fauna e da flora. Eu gostaria de tê-la conhecido, apresentado a bruxa a você. Convidá-la para tomar um café com torta de maçã ao fim do meu expediente no estábulo de Eros.
Eu também adoro esse bairro. Ajudei muitos destes moradores a construírem seus lares, naqueles anos de guerra infindáveis que te contei nas nossas cartas. Muita gente nova, muitas crianças tristonhas, sujas, ensanguentadas, pedindo por água e pão. Foi difícil, mas conseguimos nos estabilizar e fazer deste um lugar bom, quieto e aconchegante para se viver. Confesso que sinto falta daquela agitação, de dormir pouco e começar o dia antes do sol nascer. De acordar no meio da noite porque havia me esquecido de que não escrevera nada para ti. A letra saindo um majestoso garrancho, pela pressa, pela tristeza, pela ânsia. Por já escrever esperando pela sua resposta que só chegaria na semana seguinte. Assoviando para os cisnes nos céus que pousam no gramado através de uma longa e tranquila espiral em direção ao solo. Suas asas imensas rebatendo a luz solar como se fossem pedaços de estrelas em plena manhã, orgânicas, faiscantes, verdadeiras filhas da Senhora Vésper.
Naquelas horas de afobação e estardalhaço, eu acabava por me confundir com o endereço de algumas cartas. Afrodite ficava furiosa, me chamava de ingrato, de estúpido, entre outras coisas que eu prefiro não citar por aqui. Você conhece muito bem o temperamento dos deuses. Cheguei bem perto de ser demitido e, por procedência, sabia que corria o risco de perder o meu emprego, também, no estábulo de Eros. E após longos discursos refogados em lágrimas, eu consegui seu perdão e mantive o trabalho. Se eu ficasse apenas cuidando dos feridos, da fome, das covas, acho que enlouqueceria. As cartas me traziam o pé-no-chão necessário. O que é irônico de se constatar, considerando que todas elas são puras declarações de amor. Chegam lá no céu. Papéis perfumados com os feitiços de Afrodite, com seu toque, com suas bênçãos, para abrir os caminhos de todos aqueles que vinham e vêm ao seu auxílio.
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De: Apolo / Para: Orfeu
FantasyApolo, um camponês que trabalha como carteiro da deusa Afrodite, escreve uma carta para o seu amado Orfeu. Relembrando a trajetória de ambos, as guerras e as ausências.