“Evangelistas, repórteres e políticos pedindo doações serão oferecidos em sacrifício aos cães ferozes”, lê-se num cartaz de fonte serifada, junto de instruções em letras miúdas para alunos de teoria musical. Eu segui o que me foi dito, o que francamente é uma descrição bem inútil em Nova Iorque: prédio de tijolos vermelhos perto de uma deli e uma estação de metrô. Mas apesar de tudo ser estranhamente discreto demais para ser dela, tais palavras eram a confirmação que eu precisava para ter certeza de que estava no caminho certo.
Abriu a tranca, olhou de relance e aparentemente me confundiu com alguma aluna (Abi sempre disse que é um desperdício eu não ter tido vontade de aprender música com ela, ‘mãos boas’, sempre disse). Estava terminando uma ligação e não me olhou direito, os óculos enganaram, o cachecol também. No entanto, ao desligar o celular e abrir a porta, subitamente a dona do apartamento parece negativamente surpresa.
“Você não é Sally Meyer”, disse-me numa ausência de tom quase robótica, “não tem doze anos e definitivamente não trouxe violino algum com você”
“E você não tem sotaque do Brooklyn”, o anúncio do jornal descrevia Leah Benkowitz como uma estudante canadense da Academia Nova-Iorquina de Música precisando de complemento de renda e disponível para dar aulas a crianças, tocar em casamentos ou bar mitzvah. No entanto, outro anúncio em outro jornal descrevia Leah Benkowitz como uma natural de Mônaco radicada nos Estados Unidos que dá aulas de etiqueta e alta-cultura para garotas ricas, e ambos me levaram ao mesmo endereço “Ou de Montreal. Ou mesmo de Montecarlo.”
Fechou a porta com força. Não ouvi passos, então fiquei imóvel, olhando para os dois lados. Sabe, a ideia não foi minha. Na verdade a ideia foi de meu irmão, que aparentemente decidiu herdar a demora para superar seus amores não-correspondidos de Abi e o espírito de stalker do nosso pai e não calava mais a boca sobre supostamente ter visto essa doida no metrô. Há quase seis mil quilômetros de casa, depois do que houve em Alcion há seis anos, apenas dizer ‘Dave, se aquele milico não matou todo mundo daquela família fracassada e eu a achar aqui, eu mesma a matarei, só pra você parar de me incomodar’ não estava mais funcionando e ele estava realmente decidido a fazer isso sozinho.
(David Kowalski se perdeu dentro de um Starbucks uma vez, e só não ficou preso lá dentro pra sempre porque foi encontrado antes por nossa irmã mais nova 99% surda. David Kowalski poderia se perder em qualquer lugar e depender de qualquer pessoa para voltar ao normal)
“Tudo bem, não é como se eu estivesse com pressa. Ou preocupada com uma atualização geopolítica importante que pode estar nesse apartamento. Ou tivesse perdido uma tarde de pagamento nessa brincadeira.” Tiro o cachecol da boca, irritadissima e cada vez mais me questionando por que ainda faço coisas pra defender os interesses iludidos de meu irmão. Na melhor das hipóteses ele acha que ele tem chances com ela e na pior, acha que nós deveríamos aceitar ela na Resistência Alcionesa… que infelizmente ainda está dissolvida pelo mundo, mas um dia de cada vez. “Olha, Amélie, por mim você pode se mudar daqui e trocar de nome de novo pra garantir que ninguém nunca vai te lembrar da existência do lugar de onde você veio, mas nunca vai funcionar. Primeiro apareço eu, depois meu irmão, depois um primo seu, depois um repo---”
Ouço o trinco de novo, mas a porta continua fechada. Me pergunto se foi trancada ou destrancada, se isso ainda demora muito, se já é hora de eu dizer que talvez ela tenha mais sorte no esconderijo adotando um nome de origem irlandesa que nem uma diva do cinema clássico. Quando achei que já tinha perdido minha deixa e começava a procurar o contato do meu irmão pra dizer que alguém chegou antes para guilhotinar a safada, a porta se abriu. Seus cabelos agora eram castanhos e mais armados do que na época em que a conheci, mas continuava perfeitamente reconhecível pela cara de má vontade, olheiras enormes e a maior xícara de café que já vi na minha vida.
E eu tenho um diploma de medicina. Eu já vi xícaras de café bastante assustadoras.
“Você pode ficar até o próximo aluno chegar. E não deve fazer nenhuma pergunta sobre como eu cheguei ou sobre o paradeiro de outros familiares meus.” Continuava a me olhar sem qualquer expressão, pensando na continuação da sua lista de condições enquanto bebia da enorme xícara. “Se essa conversa vazar a algum veículo de imprensa você está morta, com ou sem seus canivetes pra se defender… e seu tempo está contando, eu entraria se fosse você.”
Não havia notado que havia sido convidada, de fato. Quando noto, entro no apartamento com tanta pressa que quase piso no tal cão feroz (que descobrimos ser apenas um cocker anão) e dou de cara com o piano.