Ave de mau agouro

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A neve caía densa naquele fim de tarde, e a mãe devotada acarinhava seus filhotes no ninho quase congelado. A admiração e orgulho que sentia por ser a responsável por aquelas pequenas criaturas a faziam crocitar com estridência e alegria. Cinco deles já haviam eclodido, magníficos, todos com as plumas negras e lindas, os bicos igualmente negros e brilhantes. Faltava apenas um ovo, mas a esperta ave sabia que cada um tem seu tempo e bastava paciência para desfrutar da companhia de mais esse filhote.

Os pequenos pássaros dentro do ninho gritavam e chiavam, pescoços levantados, suplicando por comida. O mais velho deles, o primeiro a eclodir, muito mais esperto que o restante do grupo, se aproximou da mãe e deu pequenas bicadas em seu peito, gritando e agitando as asinhas, tentando chamar atenção. Eles teriam que ser pacientes. O corvo pai havia saído para buscar alimentos e, certamente, demoraria.

Um jovem falcão branco, que rondava aquela árvore há algum tempo, tentou pousar em um galho próximo ao ninho. A mãe corvo, temendo por seus filhotes, grasnou furiosamente enquanto agitava as asas para cima, para parecer maior e proteger as crias.

Detestava pássaros brancos. De fato, abominava qualquer ave que se aproximava de seu ninho e de seus preciosos filhotes. Mas aquele grande falcão branco causava-lhe calafrios. A ave de rapina levantou voo e pousou em uma árvore próxima, o que fez a fêmea se tranquilizar. O filhote primogênito, sempre atento, percebeu o quanto a presença daquela ave perturbou sua mãe. Carinhosamente, deu bicadinhas em suas patas, a fim de acalmá-la.

O progenitor voltou ao ninho trazendo em seu bico um pedaço de carne putrefata, depositou-o no centro do ninho, em frente aos filhotes. Recebeu uma bicorada carinhosa de sua fêmea.

Trabalhando juntos, o casal de corvos começou a bicar pequenos pedaços da carniça, regurgitando-os em seguida nas boquinhas ávidas e impacientes de seus filhotes.

O primeiro a receber a reconfortante refeição foi o corvito mais velho, da boca da própria mãe, uma forma de reconhecimento e admiração. Era insaciável essa avezinha. Não estava satisfeito com a quantidade de comida e nem com toda a atenção que recebia. Para ele, a atenção dos pais nunca era suficiente. Sempre se impunha sobre os irmãos e acabou comendo mais que os outros.

A lua já tinha nascido quando o banquete terminou e os papais corvos foram presenteados com o silêncio das crias. Dentro do ovo restante, um pequeno pássaro tomava consciência de sua existência. Espremido dentro da casca, o pequeno ser ouvia o som do vento ao redor, o ressonar dos irmãos que dormiam ao lado e os arrulhos sonolentos do casal que descansava.

Na escuridão em que vivia, o serzinho tentou se esticar. Os movimentos foram limitados pela casca que o recobria. Fez tanto esforço que percebeu o som de algo se quebrando. Por instinto, começou a usar o bico para cavoucar a casca. A tarefa era inglória, exigindo muito esforço para pouco resultado.

Do lado de fora, toda aquela agitação começava a chamar a atenção. Mãe e pai corvos, sempre atentos, despertaram de súbito e passaram a admirar o empenho do minúsculo ser para vir ao mundo.

O irmão mais velho, pressentindo a ameaça que o caçula poderia representar, também se pôs alerta, aninhando-se junto a mãe para observar o belo e, ainda assim, grotesco espetáculo que era a eclosão de um ovo. Considerava-se um perito em sair da casca, afinal já havia passado por isso e também assistira ao nascimento de todos os irmãos. Estranhou, portanto, a lentidão com que o irmão tentava sair do ovo. Esse é tão lerdo que não é um risco - isso é o que teria pensado o pequeno corvo, se fosse capaz de pensar claramente.

O pai fez menção de ajudar, dando uma singela bicada na frente do ovo, no que foi repreendido pela mãe. Se aquele filhote fosse sair dali que saísse por conta própria, como todos os outros.

Depois de muito esforço, uma pequena parte do bico começou a aparecer. Seria mesmo um bico? É tão branco, pode ser só impressão, talvez seja algum fragmento de casca.

A tensão aumenta entre os pais.

Os filhotes, entediados, voltaram a dormir. Menos o primogênito. Esse observava atento, estranhando a demora do outro em rebentar. É tão fácil, dá pra sair de primeira. Ele não entendia a dificuldade. Na verdade, ele não entendia nada de nada. Mas o instinto lhe dizia que um corvo de verdade já teria saído daquele ovo há séculos.

Dentro da casca, o bichinho já cansado prosseguia com determinação. Aos poucos foi sentindo o ar entrando cada vez mais, o bico já todo para fora, alguma luz chegando aos seus olhos.

A sensação de quase dever cumprido lhe incentivou e, com as forças renovadas, conseguiu enfim romper toda a casca e vir ao mundo.

O pai acompanhou enternecido o esforço do pequeno. Tão logo a cria saiu do ovo, o patriarca do ninho se encolheu, apavorado.

A mãe, com o terror estampado nos olhos, se deu conta da brancura do bicho a sua frente, tão diferente dos demais. O horror percorreu-lhe as penas, eriçando-as.

O primogênito, pequeno projeto de psicopata e totalmente devotado à mãe, tomou a dianteira e bicou o irmão. O filhotinho, sem entender nada, recuou. O outro continuava a lhe desferir golpes com o bico, fazendo o caçula recuar cada vez mais.

O pai, sem reação, não soube o que fazer quando o pequeno chegou à beirada do ninho, as asinhas ainda peladas sacudindo de medo.

A mãe, num ataque histérico furioso, balançava as asas negras e gralhava tão alto que o falcão que descansava na árvore ao lado levantou voo e procurou um lugar melhor para passar a noite. 

O corvinho preferido, tomando o comportamento da mãe como incentivo, desferiu uma última bicada na criatura albina que agora se equilibrava em uma pata.

Foi com um piado lamurioso e um baque surdo que a criatura albina caiu do ninho e se misturou à neve lá em baixo.

O primeiro corvo, satisfeito, piava contente na noite fria, sob o olhar espantado dos pais, que agora se davam conta que a maldade não estava na ingênua criatura de penas brancas.

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