Anamneses

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Nunca realmente entendi aquele momento, quando o quente se tornou gelado e só havia vocês, não como se precisasse de mais alguém que não estivesse ali, naquele momento. Havia todo o calor que eu precisava. Sinto que havia mesmo não tendo memórias claras sobre tal.

Ainda posso sentir a pressão do seu corpo quase sobre o meu e o abraço dela nos envolvendo. O vai e vem da vida circulando em nossos corações. n
Nunca esquecerei daquele ritmo. dentre todos os outros, é meu preferido até hoje. Você sempre colocava seu braço sobre mim, eu sobre você, ela sobre nós. E seríamos assim para sempre.

Recordo com carinho quando, por um milagre, a luz refletiu em minhas pupilas trazendo os primeiros traços de cor. A primeira coisa que vi foi ela, de olhos arregalados, duas esferas marrons amareladas que pareciam estar sempre brilhando e ao mesmo tempo tão calmos como as águas do riacho antes da seca, apenas esperando para deixar um espaço vazio até a próxima cheia. Mas não seria mais ela, as moléculas seriam diferentes apesar da semelhança.

Eu tinha medo de que um dia a seca chegasse para nós, mãe.

Não demorou mais que dois minutos para que você aparecesse, bem menor que ela, andando em passos lentos e desajustados, quase se arrastando, mas longe da desistência. Era como aquelas plantas que resistiam ao mais duro dos verões do sertão firmes e fortes, sem se deixar abater, mesmo que suas folhas secassem e seu caule aparentasse estar prestes a quebrar. Sempre tão corajoso, teus olhos refletiam o espírito livre e todo o calor do azul, como as águas do oceano, que só vi por fotos, ou como aquele céu livre de nuvens sobre nossa cabeça.

Mamãe dizia que éramos o reflexo um do outro, até mesmo nas manias e trajeitos e talvez por isso nos déssemos tão bem. A ideia de que os opostos se atraem sempre me pareceu absurda quando comparada a ideia de que poderia falar, explorar o mundo e brincar contigo como se todo dia fosse o último e único, sem nunca cansar, desistir, parar, temer. Não penso que poderíamos fazer isso se pensássemos diferente, se fôssemos diferentes.

Apesar de vagas, as lembranças de quando as coisas começaram a ficar difíceis, ou melhor, quando nós percebemos isso, vinham com um sentimento tão duro. Fecháva-me a garganta e molháva-me os olhos vê-la daquele jeito, parecia estar sempre com dor, às vezes agonizava quando estávamos dormindo para não criar pânico. Foi duro a ver definhar de fome por nos alimentar.

Às vezes, quando já estávamos ganhando tamanho, ela nos levava para lugares estranhos, era preciso aprender a conseguir comida para não morrer de fome.
Eram enormes, onde a luz que conhecíamos não alcançava  em sua plenitude. Não havia uma alma viva em todas as vezes que fomos lá, até aquele fatídico dia, creio que você se lembra. Como poderia esquecer?

A chuva havia parado pouco depois de entrarmos. O barulho lá dentro era ensurdecedor, haviam vozes alteradas ecoando tão alto quanto as pancadas de chuva contra o telhado; quando esta se foi, o silêncio se instaurou quase que completamente, dando voz a tua atuação atrapalhada que culminou na queda de algo que vibrou e se alastrou por todo o lugar. Fomos pegos.

Não demorou mais que três segundos para os primeiros berros exaltados aparecerem. Mamãe assustou-se automaticamente, na época não entendi, hoje compreendo que ela já havia passado por aquilo muitas outras vezes. O que para nós era um instinto de correr, para ela era a voz da experiência.

Aquela foi a pior da minha vida.

Eles chegaram furiosos, portando enormes pedaços de madeira. Mamãe ainda segurava um pedaço de carne, mas soltou imediatamente quando foi acertada pela primeira vez. Gritou tão alto quanto pode, mas eles não pararam, eles nunca paravam. A cena se repetiu como se o tempo estivesse acelerando e desacelerando de novo, nos mantendo naquele momento. Não havia para onde fugir.

Anamnese - O Princípio Do EsquecimentoOnde histórias criam vida. Descubra agora