O Último Ceifador

I - O demônio no porão

Já se passava da meia-noite quando uma figura encapuzada, trajando um grosso manto negro, se aproximou da igreja nas cercanias de um pacato vilarejo. À luz da lua cheia, o estranho se deteve ante a sombra do antigo templo, levantando um punho enluvado para bater à porta. O som das batidas ecoou pelas entranhas do edifício, rompendo , por um breve instante, o silêncio sepulcral que assombrava o lugar. Poucos minutos depois, sons de trancas se abrindo e ferrolhos se deslocando foram ouvidos no lado oposto da porta , que se abriu parcialmente , revelando uma mulher de meia-idade, baixa estatura e vestida com os típicos trajes de uma religiosa. Carregava em uma das mãos uma pequena candeia , cuja a luz singela pouco contribuia para dispersar o breu noturno .

- O senhor é o padre Jeremias? - indagou ela com uma voz lamuriante, espremendo os olhos miopes em direção a silhueta semivisível do encapuzado.

- Não, senhora. O padre Jeremias infelizmente pegou uma febre e está acamado - respondeu o estranho, sua voz se assemelhando ao ribombar de um trovão - Eu me chamo Dagon Albarah, também compartilho com o nobre Jeremias o ofício do sacerdócio. Ele me pediu para vir em seu nome. - A freira, mesmo com a explicação do estranho, lhe dirigia um olhar carregado pela desconfiança, mas, mesmo assim, terminou de desaferrolhar a porta , permitindo a entrada do visitante .

O homem chamado Dagon passou pelo batente da porta, entrando em um amplo salão de teto abobadado iluminado pela luz bruxuleante de velas que lançavam sombras dançantes nas paredes. Ele então abaixou o capuz, revelando os longos cabelos que desciam por suas costas como intrincadas armações de cobre. Uma barba rala emoldurava-lhe o rosto de feições aquilinas, cujos olhos, que eram como duas chamas cor de jade, eram o que mais se destacavam.

Às suas costas, a freira havia terminado de aferrolhar a porta novamente e, com passos apressados, andou até onde Dagon admirava de forma impassivel o estado de conservação do interior da igreja, que mesmo antiga, impunha um ar de respeito e autoridade. Curiosamente, a beleza da igreja contrastava com o estado decrépito do vilarejo em suas proximidades.

- Queira me acompanhar por favor, padre. - pediu a freira trazendo Dagon de volta de seu breve momento de divagação.

Dagon seguiu a freira ao longo da nave principal da igreja, por entre as duas fileiras de bancos de madeira que a dividiam, em direção à um estreito corredor à esquerda do altar.

-Como devo chama-la, irmã? - indagou Dagon enquanto atravessavam o corredor escuro com apenas a luz que provinha da candeia para guia-los.

-Florencia, irmã Florencia. - respondeu ela com azedume na voz. - Imagino eu, padre Dagon, que o senhor esteja situado sobre o nosso atual problema.

-Sim, irmã, estou . O padre Jeremias me informou sobre a gravidade da situação. Falando nisso, como está a garota?

Florencia soltou um breve suspiro , deixando transparecer toda a angústia que a acometia .

-A situação se agravou desde a noite de ontem. O demônio se fortaleceu de uma forma que simplesmente conte-lo já se tornou um desafio.

- Entendo - disse Dagon com a voz grave. - Por quantos exorcismos a garota já passou?

Já foram nove desde que tudo começou - relatou a freira - No início era possível abrandar a influência do demônio sobre a pobre Beatrice. Mas agora... parece que as tentativas do padre Janus de expulsa-lo apenas o divertem. Já haviam se passado cinco dias quando decidiu-se pela convocação do padre Jeremias.

Haviam chegado à sacristia nos fundos da igreja, onde um pequeno lance de escadas conduziam para baixo.

Após vencerem os últimos degraus , sons macabros tornaram-se audiveis; uma mistura de gritos de horror com uma risada cadavérica. Florencia lançou um olhar temeroso à Dagon antes abrir uma porta lateral, que levava ao que deveria ser um depósito para a paróquia , mas, em vez disso, era o cenário de um horror sem igual .