É só um lance

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- E isso, é o quê?

Desvio o olhar dos meus próprios pés e sigo a direção que o dedo da garota aponta dentro da gaveta na escrivaninha.

- Isso não é nada. Quer dizer, não é nada importante, então é como se não fosse nada. É tipo... - cocei a cabeça; como explicar sem ter que falar o que era? - É só um lance que eu tô escrevendo.

- É o seu livro? - perguntou me lançando um olhar cauteloso.

Olhei-a assustada. Como ela sabia?

- Lenny me contou. - falou percebendo minha surpresa. Pegou a pilha de papéis desiguais presos por um clipe e sentou ao meu lado na cama - Quer dizer, ele não sabia o que contar, mas falou que você quer ser escritora quando acabar a escola e que está trabalhando num livro.

Engoli em seco ao vê-la segurando. A capa era o desenho de um anjo que eu tinha feito meses atrás.

- Eu posso ler?

- A-Ainda não está acabado.

- Só um trechinho. Por favooooor - falou apertando-o contra o peito.

Confirmei com um aceno leve de cabeça. Era difícil negar qualquer coisa para Scar.

A garota torceu a lateral entre os dedos, fazendo as folhas correrem rapidamente, até parar numa página aleatória. Lançou-me um sorriso empolgado antes de voltar a encarar minha caligrafia miúda e disforme. Leu em voz alta:

"Agora são 3 da manhã
E eu queria nunca ter nascido
Tudo vai ficar bem
É o que eles dizem
Mas eu me sinto sufocando
Sob a água, me afogando
Com os sentidos entorpecidos
Um pouco mais a cada dia
Não existem mais lugares seguros
Não consigo ter sentimentos puros
Por isso eu continuo chorando
E com lágrimas, me ocupando
Para não pensar na minha caixa
E na minha lâmina mágica
Por isso eu continuo escrevendo
E com sorte, não sangrando e morrendo
Não esta a noite*"

A cada palavra dita eu me encolhia um pouco mais, como se fossem socos e tapas vindo de todas as direções contra mim, e só me restasse tentar inutilmente me proteger. Ficava tão patético quando dito em voz alta, que me fazia querer ser tragada pelo colchão.

Mesmo depois de terminar, minha amiga continuou encarando o papel por alguns segundos. E isso me deixou mais nervosa.

Eu sabia bem o que ela estaria pensando agora. E, por Deus, como eu era idiota! Por que diabos eu a deixei ler?! Agora Scar sabia que eu era uma completa estúpida solitária e fraca clamando por atenção, que escreve coisas idiotas. Agora... Agora ela sabia que tinha algo indo muito errado na minha cabeça, que eu era a clássica esquisitona suicida dos filmes. Meu Deus, e agora ela nem ia mais querer que...

- É muito bonito - falou fechando o quase livro e colocando-o no móvel ao lado da cama. - Eu não sabia que você gosta de poesia.

Pisquei incrédula.

- Eu não gosto - respondi mecanicamente.

- Ora, o que foi isso então?

Dei de ombros.

- Isso... foi só um lance. Não é uma poesia.

- Você está cheia de "lances" hoje, hein? Por que não aproveita e me conta o lance entre você e o Gabriel?

Cai de costas em minha cama e a garota deitou apoiando o peso da cabeça no cotovelo para me olhar.

- Não tem o que falar. Lenny me disse que eu podia convidar um amigo e eu o fiz.

Guia Prático Para Um Suicídio De ÊxitoOnde histórias criam vida. Descubra agora