❁ Prólogo ❁

23 9 7
                                    

QUANDO ME DEI conta pela primeira vez de que eu pudesse ser fictício, meus dias úteis eram vividos em pura tortura psicológica e dúvida.
Tortura psicológica pelas vozes que nunca ficam quietas independente da situação. E dúvidas causadas pelo meu passado que eu não me recordo.
Quando apareci neste campo com diversos tipos de flores eu me desesperei.
Comecei a me questionar onde eu estava, que lugar era esse, por que eu estava aqui...
Quanto mais eu pensava, uma dor insuportável aumentava na minha cabeça, que tinha me feito apertar os lábios para reprimir um gemido de dor. E como uma mágica, uma luz se acendeu em minha mente confusa me mandando ir a residência próxima a mim. A única, também.
Sem escolhas, segui e dei batidas tremidas na porta. Mesmo com a chuva que caia e esbanja escuridão, consegui ouvir os passos receosos que vinham em direção a porta.
Afinal, quem em sã consciência estaria esperando alguém no meio de um campo em um chalé? Talvez um assassino, mas esse não era o caso.
Comecei a pensar nas diversas formas que eu seria enxotado, xingado ou até mesmo agredido. Me lembro até hoje, da sensação que me invadiu, quando invés de tudo isso, meu peito foi preenchido por...
Ternura? Carinho? Gratidão? Talvez tudo isso junto, até hoje não sei especificar qual sentimento era aquele. Mas de uma coisa eu tenho certeza, aquele foi o melhor sentimento que eu já senti desde quando acordei neste lugar.
A chuva que antes caía com seu ruído monstruoso, podendo ser facilmente confundido com almas sendo condenadas, foi perdendo a intensidade depois do abraço que eu recebi.
Quem eu julgava ser um assassino, foi quem me fez sentir bem. Foi quem me fez sentir em um contato materno. Um contato de uma mãe que passou anos longe do filho e finalmente reencontrou-o novamente.
Quando os seus braços se rodearam em mim, foi como se todas as minhas dúvidas fossem deixadas para traz. Me senti inteiro, mesmo sem conhece-la. Me senti completo, como se as questões que rodeavam minha mente não fossem nada.

Foi assim que eu descobri meu primeiro remédio, meu calmante.
Flora. O nome que curiosamente tinha o significado de florida, aquela que é perfeita. Proposital pelas flores do campo?
Duas pequenas palavras que marcaram o nome dela.
Florida e perfeita, iguais as flores que rodeavam toda extensão atrás de nós.

O abraço não durou muito, óbvio. Mas foi nesse curto tempo em que nos separamos que a mulher reparou no meu estado. Encharcado e com roupas sujas pela lama em que eu estava quando acordei.

- Gostaria de entrar? - o medo de ter uma resposta que não fosse a esperada era nítido.

- Sim. A sua... Roupa... - um movimento de cabeça tinha me impedido de continuar.

- Bobagem, garoto. Roupas se lavam, isso não é problema.

- Oh.

Quando entrei na residência, uma onda de conforto me atingiu. Não era como se fosse uma mansão, muito pelo contrário. A cor creme deixava a casa com uma leveza, o piso de madeira rústica fazia um contraste incrível.

- Eu gostei desse lugar.

Virei o calcanhar para trás e a visão que a porta aberta me permitia era grande para notar os detalhes que antes me passaram despercebidos.
A varanda virada ao leste tinha madeiras iguais as de dentro. O piso contornava o início da parede até o final, deixando dois pequenos degraus para descer. Dois estofados cremes estavam dispostos para relaxar, atrás deles estava a cerca que os impedia de cair.
Um pilar de madeira fechava a certa e subia para o telhado, que não deixava a chuva molhar a pequena área.

- Se continuar muito tempo observando com este vento em você, vai acabar pegando um resfriado. Você precisa trocar essas roupas.

- Ok. Mas primeiro poderíamos conversar? Eu tenho dúvidas.

- Claro, vamos para a cozinha. O ar está mais quente lá, costumo deixar o forno ligado para aquecer a casa.

A sala de estar não era diferente dos estofados de antes, eram apenas maiores.
Dois em cada canto, com uma mesa retangular ao centro e uma estante cheia de livros encostada na parede.
Passei por um pequeno corredor que conectava a cozinha com a sala e entrei.
Era simples e estreita. Uma mesa quadrada no canto, com duas cadeiras estofadas na cor da casa. O fogão, com o forno embutido realmente estava ligado e ao lado dele havia uma pia de mármore claro.
Uma pequena geladeira ficava presa entre o mármore e a parede.
Consegui enxergar a cozinha de um ponto "estratégico", uma grande vantagem de uma porta ficar bem no meio do cômodo.

- Como se chama?

- Eloy. E você?

- Flora. - não esbocei reação alguma, no fundo era como se eu já soubesse disso. - Garoto Eloy... Tinha me falado que queria conversar comigo.

Perguntas que antes estavam entaladas na minha garganta saíram como uma luva: - Você sabe o motivo pelo qual eu estou aqui? Não faz sentido algum! Eu apareci aqui no meio do nada, e... Não tem explicação!

- Talvez, você apareceu aqui por algum motivo maior. Sem lembranças, para que comece uma vida nova. Ou talvez ela esteja começando agora. A vida é louca, nunca se sabe o que pode fazer para você. Existe várias possibilidades, garoto. Você se lembra do seu nome, não? Isso já é bom. É um novo começo, se permita viver ele. Não vou dizer a você que irei te ajudar a resgatar suas memórias perdidas, isso é algo que eu não posso fazer. Não tenho dons mágicos.

- Um motivo maior? Recomeçar a vida? Hum... Não sei se isso é bem o que eu imaginava.

- E o que imaginava? Você é alguém que foi colocado no meu caminho e isso com certeza não foi atoa. Se não tem memórias, você automaticamente começa uma nova vida. - concordei com a cabeça. Não ter memórias... O que Flora disse realmente fazia sentido. Não tinha dúvidas, eu não teria aparecido sem nenhuma razão.

- Sabe se alguém me trouxe para cá, ao menos? Você viu se alguém me deixou aqui?

- Não, rapaz. Eu não estava no meu melhor momento, estava em uma crise. Não costumo prestar atenção nas coisas ao meu redor quando estou em uma dessas. Sabe o que é isso? Uma crise, no caso. Você foi como um remédio que apareceu do nada. Fez ela se dissipar, como o vendaval que estava lá fora.

- Irônico que eu posso dizer o mesmo. Me sinto seguro ao seu lado. - o rosto dela se iluminou, com um largo e belo sorriso sincero, sem traços de que ela estava em uma crise momentos antes. - Por que você mora em um campo, sozinha? Se for um tipo de psicopata, me avisa de uma vez para que eu reconheça meu destino. - fazer o que? Se fosse para ser morto, eu iria preferir saber.

O som da risada dela preencheu a cozinha, logo em seguida se pôs a falar: - Eu não gosto de muitas pessoas ao meu redor. Prefiro a calmaria, prefiro o vento dançando valsa com as flores. Por isso fico sozinha, em paz.

A minha expressão, que antes estava serena mudou bruscamente para preocupação. E se...

- Ei, o que foi Eloy? Falei algo que te deixou desconfortável?

- Não é isso... Mas se você prefere ficar sozinha, o que vai acontecer? Onde eu vou ficar, eu vou sair do campo? - vozes e mais vozes começaram a falar na minha cabeça, quando eu pronunciei minha última fala. Elas gritavam cada vez mais alto, me deixando apavorado. Que diabos era aquilo? Me lembro de ter colocado as mãos na minha cabeça, sussurrando para parar. Infelizmente, aquilo não adiantava. E elas só se calaram quando Flora me respondeu, com um rosto abatido.

- Você é uma criança, não pode ficar no mundo sozinho, sem ninguém. Ainda mais sem memórias. Eu sei que disse que não gosto de pessoas ao meu redor, mas posso abrir uma exceção. O que acha? Esse lugar anda meio sozinho mesmo. - encarei a mulher a minha frente e pisquei, estava tudo quieto. A fração de segundos em que minha mente tinha virado um turbilhão de vozes me deixou atordoado, e Flora pareceu perceber que eu não estava bem. Por fim, eu apenas respondi um obrigado.

Não por ela ter me falado que eu poderia ficar na casa. - que para ela, esse foi o motivo do agradecimento. Mas para mim, foi pelo silêncio que ela fez reinar em mim.

E novamente no mesmo dia, Flora foi meu calmante. E de uma forma singela, nós criamos um vínculo importante em nossas vidas.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jan 27, 2019 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Lost MemoriesOnde histórias criam vida. Descubra agora