II - Carta ao padre

204 11 0
                                    

O padre Jeremias servia mais uma taça de vinho à Dagon Albarah quando indagou -lhe:

— Foi só isso ? Destruiu o demônio apenas com o devorador da noite ?

O ceifador , sentado em uma cadeira do lado oposto da mesa de ébano, tomou um gole do vinho antes de responder ao padre.

— Sim, afinal ele era só um diabrete, e estava empregando muito de suas energias para tentar escapar. Sendo assim bastou um único ataque para destruí-lo.

Dagon havia retornado de sua última viagem havia um dia e meio quando Jeremias o convocou para uma conversa privada em seu escritório para que relatasse o que havia se passado durante a missão. Havia viajado durante uma semana por estradas inconstantes para chegar ao lugar de onde fora convocado. Após matar o demônio , ficou hospedado na paróquia de Janson durante cinco dias para recobrar suas forças antes de regressar à Roma, o que lhe tomou mais uma semana.

— Bem, meu amigo , parece que você conseguiu novamente , vamos somar mais essa com sua longa coleção de façanhas — disse Jeremias entre risadas.

O padre não era um homem velho , se aproximava da casa dos cinquenta , mas mesmo assim ainda exibia um aspecto jovial, com o cabelo castanho imaculado , e algumas poucas rugas abrindo sulcos na pele de seu rosto. Porém o que mais se destacava em Jeremias eram os grandes olhos cinzentos , e o nariz torto que, segundo ele, fora quebrado em seu juventude.

— E a garota ? Imagino que a tenha salvado.

Uma expressão de desalento sombreou as feições do warlock.

— Fisicamente sim , mas creio que o trauma pelo qual passou deixará uma sequela permanente. Quanto a isso , eu não pude fazer nada.

— Entendo. O padre Janson ficou deveras impressionado com o seu trabalho. Enviou-me uma carta dizendo que você é um santo a ser canonizado e que irá batizar a paróquia com o seu nome.

Dagon quase se engasgou com o vinho no momento em que uma gargalhada explodiu de seus lábios. Quando por fim se acalmou , encarou o padre e disse:

— Isso definitivamente vai chamar atenção para mim . Essa aparente fama que possuo já me põe em uma posição que eu preferiria evitar — ele sorveu o restante do conteúdo de sua taça e, quando o padre fez menção de lhe servir novamente, fez um gesto de recusa, pousando sua taça no tampo da mesa.

— Sabe, você não precisa temer a inquisição. O meu tio e meus primos lhe asseguram que você está isento de qualquer tipo de ameaça — argumentou o padre servindo novamente sua própria taça.

De fato o círculo íntimo de Jeremias era mais do que suficiente para Dagon se  manter protegido , já que ele era do sobrinho do cardeal Vittorio Bianchini, um homem influente, que cultivara relações de amizade com as principais famílias das repúblicas italianas, desde os Médici de Florença, aos Sforza de Milão. Vittorio também era uma personalidade muito respeitada no Colégio de Cardeais, além de ser uma presença constante no círculo íntimo de sua Santidade Gregório XIII. Seus diversos parentes possuíam bispados e paróquias nas regiões mais ricas da Europa .

Tirando a família do cardeal, e alguns amigos de confiança deste, poucos outros sabiam da real identidade de Dagon. Como Jeremias era o sobrinho mais jovem do cardeal , coube-lhe a administração de uma paróquia nas proximidades do Monte Palatino, modesta porém bem frequentada.

Vittorio, por sua vez, justificava toda a sua generosidade para com Dagon à uma dívida antiga que ele teria com os membros do clã Albarah, embora ele nunca entrasse em detalhes a respeito.

O warlock nunca ficava muito tempo no mesmo lugar , pois vivia sobre o disfarce de um clérigo viajante, porém sempre se deslocava para uma área onde um dos parentes e amigos de confiança de Vittorio e Jeremias tinham influência.

O Último CeifadorOnde histórias criam vida. Descubra agora