NICOLAU

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Quando Renato acordou, sentiu a cabeça pesada e o pescoço doía tanto que se levantar parecia uma missão impossível. Não conseguia abrir os olhos. Por mais que tentasse, era como se estivessem colados. Sentia um calor insuportável dentro daquela roupa vermelha, a fivela do cinto apertava sua barriga e a barba postiça fedia a cachaça e vômito.

Ainda de olhos fechados, notou que seus braços envolviam um corpo quente, podia sentir a respiração movimentando suas mãos para cima e para baixo. Ele não se lembrava de ter ficado com ninguém na noite passada. Se aninhou junto à sua companhia, abraçando mais forte apenas para sentir o odor de cachorro molhado ao cheirar seu pescoço.

Com esforço, conseguiu sair da posição de conchinha em que estava, esfregou os olhos e conseguiu abri-los com sofrimento. Só então percebeu que, de fato, dormira abraçado a um cachorro. Na sarjeta. Ao lado de sacos de lixo e garrafas vazias de bebida.

Já tivera momentos desesperadores em sua vida, mas nunca havia descido tão baixo.
Com dificuldade, sentou-se e apoiou as costas na pilastra do viaduto onde, lembrava agora, tinha urinado e vomitado na noite anterior. Afrouxou o cinto e abriu a parte de cima de sua roupa. Arrancou a barba postiça, peruca e o gorro que usava e jogou-os de lado. Olhou o simpático cachorrinho cor de caramelo com quem dormiu abraçado. O animalzinho, sem raça definida, devolveu-lhe um olhar afetuoso e começou a lamber sua mão. Enquanto afagava o cão, Renato mirou o horizonte.

Era uma paisagem feia, fria, cinza e decadente. Quase uma metáfora de sua vida nos últimos tempos. Não sabia onde estava, só sabia que aquela não era a parte boa da cidade.
Seu amiguinho canino agora cheirava e lambia a peruca e a barba jogadas no chão.
Renato ficou ali, olhar apático, pensando em que ponto sua vida começou a dar tão errado para ele acabar ali, debaixo da ponte, vestido de Papai Noel e com uma ressaca monumental.

Pensou na esposa, agora ex, que o havia deixado duas semanas depois de ele perder o emprego. Pensou no senhorio que o despejou do apartamento onde morava após o segundo mês sem pagamento do aluguel. Pensou no amigo que conseguiu para ele um quarto barato para alugar e o bico de Papai Noel de shopping. Pensou na cara de decepção desse mesmo amigo quando apareceu bêbado para trabalhar dois dias atrás.

Foi mandado embora, claro. Recebeu uns poucos reais no acerto de contas. Gastou quase tudo em bebida e agora aqui estava, na sarjeta.

Olhou em volta. Ao seu lado esquerdo, uma avenida cheia de caminhões, à frente a parte de baixo do elevado, com lonas, tapumes e papelão à guisa de moradia. Do lado direito, alguns metros adiante, em pé em cima de um pedaço de papelão, segurando um cobertor, um menino olhava para ele desconfiado, porém com curiosidade.

Renato encarou a criança de volta e o pequeno rapaz sustentou o olhar, corajoso.

- Moço, você não é o Papai Noel de verdade, né?

Pego de surpresa pela pergunta, Renato hesitou em responder. Não imaginava que o molequinho ia confrontá-lo assim e não sabia o que falar para o menino. Não tinha noção se a pergunta demonstrava que o pequeno acreditava ou não em Papai Noel e ele não queria estragar as expectativas daquela criança.

- Qual seu nome, moleque?

- Nico, senhor - a fala veio surpreendentemente firme, o menino ainda o encarando, desafiador.

- Nico de quê? - a pergunta de Renato foi hostil. Na verdade, o que ele queria era encerrar aquela conversa e sair logo dali. Talvez conferir se ainda lhe restava algum trocado para mais uma dose. Mas o rapazinho não se abateu e respondeu com cordialidade, apesar do olhar abusado, o que deixou Renato surpreso de novo.

- Meu nome é Nicolau, mas me chamam de Nico. Os outros nomes eu não sei, minha mãe que sabe.

- E onde tá sua mãe, menino? - a ideia de Renato era mandar ele procurar logo a mãe e deixá-lo em paz.

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