A CEIA

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Apesar de ser o fim de tarde, o sol ainda era escaldante e Renato já se sentia ardendo dentro da calça de veludo. As pesadas botas de couro aumentavam ainda mais o desconforto.

Nico estava em casa, bem à vontade. Parecia conhecer aquela região como a palma da sua mão.

Puxava Renato pela mão, entre becos e vielas, cortando caminho.

O odor de chorume ia se intensificando à medida que se aproximavam do lixão. O calor insuportável servia apenas para tornar cheiro mais forte.

Saíram de uma ruazinha direto para o fundo do lixão. Ao longe, Renato notou a cordilheira de lixo. Mesmo na véspera de Natal, caminhões iam e vinham, despejando ali dejetos de toda a cidade.

Do lado direito, antes da entrada do lixão, duas dúzias de barracos estavam dispostos de forma caótica.

Nico se movimentava com naturalidade entre os casebres. Aqui e ali acenava ou balançava a cabeça para algum conhecido.

Parou em frente ao barraco de onde saiu uma senhorinha idosa, muito enrugada, lenço na cabeça, secando as mãos na barra da saia.

- Nicolau! Como você tá grande, seu pestinha! - gritou a velha ao ver o menino, que correu ao seu encontro. - Quanto tempo você não aparece por aqui! Achei que não ia te ver mais...

Nico abraçou a senhora, sorrindo abertamente. A velhinha beijava sua cabeça e afagava suas costas.

- Eu tava com saudade da senhora, Dona Graça. Mas eu não podia ficar vindo aqui...a senhora sabe... Por causa dele.

A senhora olhou o garoto com o semblante pesaroso, abraçando-o mais forte.

- Ele não tá mais aqui tem tempo, meu filho... Se meteu numa briga de faca ano passado. Mataram ele e jogaram no córrego lá embaixo.

Nico levantou a cabeça e olhou no fundo dos olhos de Dona Graça, como que tentando analisar pelas expressões faciais da velha se o que ela dizia era verdade ou não.

Depois de alguns segundos, pareceu decidir acreditar na senhorinha. Sorriu sem vontade e abraçou-a novamente.

Renato, que até então apenas observava a cena à uma distância respeitosa, foi enfim notado por Dona Graça, que lhe dirigiu um olhar inquisidor.

Como que tentando se justificar e se adiantar ao interrogatório que certamente viria a seguir, Renato deu um passo para a frente e, indicando Nico com um sinal de cabeça, falou:

- Eu que trouxe ele. Ele está procurando a mãe, sabe. Eu só estou ajudando...

Interrompeu o discurso ao perceber que a fisionomia de Dona Graça endurecia cada vez mais. A velha olhava para ele desconfiada e ameaçadora, agarrando Nico cada vez mais forte junto a si. Baixou o rosto e encarou o menino, que levantou a cabeça e disse:

- É verdade, Dona Graça. Ele é meu amigo, é tipo um Papai Noel...

A velha interrompeu o garoto e, ainda encarando Renato com a cara amarrada, indagou Nico secamente:

- Ele não fez mal pra você não, né, moleque?

- Não, Dona Graça! Ele é meu amigo mesmo, de verdade. Ele só tá me ajudando.

Nico respondeu sorrindo, o que ajudou a velha a acreditar na boa-fé de Renato.
Soltando o garoto, ela deu um passo em direção a Renato. Parou em sua frente e analisou sua roupa de Papai Noel. Ainda com a cara amarrada, estendeu a mão, cumprimentando-o.

- Graça Pereira, prazer.

- Eu sou Renato, e o prazer é meu, Dona Graça. Mas então...como eu ia dizendo, estamos procurando a mãe do Nico. Ele acha que ela pode ter vindo pra cá...

NICOLAUOnde histórias criam vida. Descubra agora