Eu lembro de você de vez em quando. Sei que a sua família proibiu de nos falarmos desde que me assumi gay. Imagino como deve ter sofrido preconceito também porque vivíamos juntos. Mas eles deveriam ler a minha mente para saber que nunca tivemos nada além de conversas. Contigo eu podia ser excêntrico, porque éramos iguais. Lembro o quanto ficava empolgado quando começou a aprender a língua hebraica. Dizia que não acreditava em traduções e queria aprender mais sobre a bíblia por si mesmo. Por que você era tão cristão? E por que raramente saia de casa?
Você já era uns três anos mais velho que eu. A gente brincava de tanta coisa, lembro dos bonequinhos de Pokémon, os que vinham nas garrafinhas de Guaraná. Tinham tantos! Eu amava ouvir você falar sobre os documentários que assistia na Tv Cultura. Acho que os únicos tipos de programa que via eram documentários sobre a vida animal.
Lembra quando você inventou uma língua e criou um livro com todas as regras de gramática, estruturas morfológicas e pronúncia? O problema era que sempre que eu começava a aprender você mudava tudo...
Eu me pergunto como vive agora. Ouvi dizer que está morando com uma namorada na capital e que não tem nenhuma rede social. Claro que não, logo tu que sempre criticou o mundo online. Também não consegui te ligar com o número antigo que peguei com um amigo em comum. Como está se adaptando a esse mundo? Será que ainda é evangélico? Será que ainda toca violino e piano? Será que vive preso em casa, como antes? Quem te visita agora?
Durante todos esses anos que nós não nos falamos eu já fui diversas pessoas diferentes. Me perdi durante muito tempo com bebidas e pessoas erradas. Transei com algumas pessoas e vivi nesse mundo dos adultos por anos... mas tudo é tão sem sentido. Eu me sentia muito vazio, sabe.
Hoje estou tentando fazer as minhas escolhas e me conectar com aquela criança que costumava ler seus livros e ouvir as notas do teclado enquanto tocava Beethoven. Mas e você? Quem será que é agora?
