"Passe por cá, Seu Bicho-homem"

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| ✴Seu  equivale ao axiônimo Senhor.| ✴


Há muito tempo atrás vivia numa floresta uma menina órfã chamada Zabezinha. Por não ter quem lhe valesse, a Virgem Maria a tomou como afilhada e olhou por ela. A pobre passava os dias sozinha e a Virgem, apiedada, deu como presente uma cachorrinha mágica. Ela agradeceu a madrinha e tomou o animalzinho nos braços. Tinha o coração confortado, pois circundava por aquelas bandas uma criatura terrível que devorava os vivos, o Bicho Homem. Zabezinha cuidava da cadelinha e a cadelinha zelava por Zabezinha. Durante o dia ela não continuava só e quando o sol se punha o encantamento do animal afastava todo o mal. Tudo ia bem.

Após passar o dia a brincar, veio uma noite como as outras. A menina miúda estava encolhida na cama, coberta da cabeça aos pés e a cadelinha a dormir ao lado, quietinha e com olhos fechados, como se já dormisse há muito. De repente, passos pesados circundam a pequena cabana. Ela tinha medo, tentou não tremer, mas diferente dos outros dias, viu-se a querer saber como era a face do tal 'bicho'.

Passe por cá, seu bicho homem. Cantarolou temerosa com a voz fininha a vacilar.

— Abre a porta, Zabezinha. — Vociferou o bicho homem. O animalzinho ao notar aproximação da fera começou a cantar, a música forte e limpa cortou o ar, enchendo todos os cômodos.

Cãin, cãin, Zabezinha tá dormindo, cãin, cãin. Sem poder avançar, o monstro se deteve e bolou seu plano. Limpou a garganta antes de entoar a seguinte melodia:

-Matai sua cachorrinha que a meia noite eu venho.


✴✴✴


A menina cobriu a cabeça e tornou a dormir, matutava o dito do Bicho-Homem. Ela queria ou não queria ver? Quando o sol estava para partir decidiu-se de uma vez e matou a cachorrinha. Deixou-a no mesmo lugar onde dormia diariamente e ocupou o canto que lhe cabia na cama. Esperava encolhida, as mãos a apertar o lençol gasto e desbotado. Como das outras vezes pôde perceber a aproximação da criatura, por isso, chamou-o numa cantoriazinha baixinha.

Passe por cá, seu bicho homem — Ele sorriu ao ouvir o convite, mas novamente quedou-se detido na porta.

—Abre a porta, Zabezinha. -Bateu furioso.

Cãin, cãin, Zabezinha tá dormindo, cãin, cãin. -—A voz saía do corpo da cachorrinha que jazia inerte. Não tão forte como quando era viva, mas seguia a proteger a cabana.

— Queimai o corpo de sua cachorrinha que a meia noite eu venho.— Partiu tão sereno que nem parecia o próprio. Zabezinha virou-se de lado, não havia nada a fazer além de esperar o amanhecer.

Preparou um café da manhã reforçado e foi até a floresta buscar lenha, com ela acendeu a lareira da casa e queimou o corpo do animalzinho. Terminou tudo de noitinha, cansada, fechou os olhos e dormiu. Acordou com as batidas.

— Abre a porta, Zabezinha. —Vociferou impaciente.

 Passe por cá, seu bicho homem - Cantarolou o convite sem hesitação. A curiosidade lhe roía por dentro.

 Cãin, cãin, Zabezinha tá dormindo, cãin, cãin. — Saiu da lareira um som baixinho. Baixinho, mas poderoso porque a criatura seguia sem poder entrar.

Atirai fora as cinzas de sua cadelinha que a meia noite eu venho.— Partiu sem demora, deixando toda impaciência com Zabezinha, pois ela seguia sem ver a face do bicho e já começava a se irritar.


✴✴✴


Zabezinha buscou a vassoura e o balde que ficavam atrás da casinha. No balde colocou os restos da queima da lareira, já a vassoura, usou para tirar as cinzas. Lançou tudo no rio. Ficou o dia sem acumular grandes afazeres, tamanha era a ansiedade. Justamente por isso que as horas tardaram a correr. Meteu-se bem rápido nas cobertas, os olhos fixos na porta e os ouvidos atentos.

— Abre a porta, Zabezinha. —Berrou sem demora o bicho-homem.

 Passe por cá, seu bicho homem. — Cantou sem vacilar. 

— Cãin, cãin, Zabezinha tá dormindo, cãin, cãin. — Saiu a vozinha das cinzas da cachorrinha que ainda estavam espalhadas pela casa. Era um sonzinho quase inaudível.

 Atirai fora o resto das cinzas de sua cachorrinha que à meia noite eu venho —Após as instruções desapareceu mata adentro.

Cansada e querendo sanar de uma vez a própria curiosidade, passou metade do dia a carregar baldes d'água do rio até a casa. Fez uma grande faxina. Lavou os cômodos, esfregou as paredes, ensaboou bem até a lareira, tirou todo pó que poderia ter entre bules, xícaras, copos, talheres. Completamente exausta, arrastou-se para a cama antes mesmo que o sol terminasse de se esconder atrás das montanhas. Dormiu pesado, 'muito e tanto' que acordou sobressaltada com as batidas da porta. Dessa vez não o chamou, sentia novamente o medo puro, purinho e sem atenuantes, sem a vontade de xeretar. Encolheu-se na cama a tremer como vara verde. Os nós dos dedos estavam brancos por conta da força que colocava ao fechar as mãos entre as cobertas.

— Abre a porta, Zabezinha. — Toc, toc. Silêncio.

A criatura esperou somente uns segundos. Não porque precisava, mas porque podia e queria. Zabezinha não pôde ver, mas o Bicho-homem sorriu. Com um único golpe do grande pé esquerdo a madeira da porta cedeu, o monstro avançou sobre a menina num único salto e ZAZ... fez-se breu.


FIM

BICHO-HOMEM  𝓬𝓸𝓷𝓬𝓵𝓾𝓲́𝓭𝓸Onde histórias criam vida. Descubra agora