Aquilo

66 3 1
                                    

Lá estava aquilo. Algo ou alguém. Não tem como saber o que é. Era enorme, e sobrevoava a cidade, impressionando a pequena Alice de Amusant, que não conseguia dormir naquela noite de segunda, pois pensava nos trabalhos de matemática que ela deveria entregar no dia seguinte, mas não os fizera. Durante o primeiro minuto da meia-noite, ela estava olhando pela janela, e de repente surgiu nos céus uma majestosa criatura, de beleza indescritível.

Mas aquela beleza só duraria por um curto tempo. No momento que o relógio marcasse meia-noite e um minuto, o ser desaparecia quando Alice piscava seus pequenos e puxados olhos. Ela se perguntava sobre o que teria acontecido naqueles breves segundos de pura magia, mas isso era história para outro momento, já que no auge dos seus oito anos, era importante que Alice aproveitasse de sua noite para dormir.

E assim fez. Se atirou para cima do cobertor de cama, que encostava na parede da janela. Ela rola, se enrolando inteira no cobertor rosa com a estampa de um coelho. Ela vai tentando mudar de posição para encostar sua cabeça, com seus cabelos castanhos que chegavam até o meio do pescoço, no grande e bem recheado travesseiro. Ela se deita de lado, pressionando sua enorme bochecha esquerda contra o travesseiro. Fecha os olhos com força, queria dormir logo, e assim fez.

Após algumas horas de sono, Alice foi acordada pelo chamado de sua mãe. Esta hora, a hora de levantar, era um dos momentos mais difíceis do dia para a menina, que fica se revirando na cama até criar vontade de levantar-se. Após um ou dois minutos, ou provavelmente mais, ela se coloca sentada na cama, ainda com os pés para dentro. Ela olha para o teto, e começa a pensar: o que era aquilo? Não se sabia, nada se sabia sobre aquilo. Alice não podia esperar pelo momento em que chegaria na sua escola e compartilharia a história com seus melhores amigos, Diego e Isabella, com quem podia contar em qualquer situação, tanto em batalhas contra os malignos valentões do oitavo ano, quanto em buscas pela Loira do Banheiro.

Alice conheceu Isabella no primeiro ano. Na primeira semana de aula, a professora havia criado duplas se baseando nas características dos alunos, e achou que a combinação da inteligente, porém tímida Alice, junto da agressiva e igualmente inteligente Isabella poderia ser uma das duplas mais fortes da turma e talvez do ensino fundamental. Diego chegou no outro ano, vindo do Uruguai com sua família, teve como obrigação ficar perto de Isabela, menina quase fluente em espanhol. Os três juntos formaram uma incrível e inseparável aliança, ou era o que se esperava.

Alice ouve o segundo chamado de sua mãe. Isso era um forte alerta de que a menina estaria prestes a se atrasar. Alice rapidamente joga as suas pernas para fora da cama, continuando sentada, até que colocou suas mãos aos lados do corpo, encostando-os na cama, e logo se impulsionou para frente, ficando em pé em cima de seus sapatos, desamarrados e remendados com tecidos de variadas cores. Ela vai enfiando os pequenos pés dentro dos sapatos, escarafunchando eles enquanto se espreguiçava, alongando os braços. Após ter seus pés dentro dos sapatos, ela se abaixou para amarra-los, com o nó convencionalmente usado para se amarrar os sapatos, apesar dos calçados de Alice não serem tão convencionais. Após concluir os nós nos cadarços de cor roxa, ela levanta seu corpo e ergue os seus braços, alongando-nos novamente, e então relaxa, com os braços soltos. Alice criou o costume de dormir com a roupa que pretende usar no próximo dia, para não perder tempo trocando o seu pijama estampado com unicórnios pelo uniforme azul-escuro estampado com o brasão da sua escola. Ela apanha sua mochila, que ficava encostada rente à sua cama, e sai do quarto, repleto de pôsteres de artistas coreanos que cobrem as paredes azuis.

Ela chega na cozinha. Lá está sua mãe, fritando dois ovos, enquanto deixa uma panela cheia de café com leite e achocolatado na outra boca do fogão, a bebida favorita das duas. Alice coloca delicadamente a sua mochila ao lado da cadeira sob a mesa, na qual se sentou. Na mesa havia um pacote de pães-franceses, com a casca tão fofa quanto o miolo. Este era o jeito que a menina gostava do pão. Também havia um pote dividido em dois, com uma divisória no meio que separava as fatias de presunto das de queijo. Ao lado deste pote, tinha um frasco de requeijão, e um outro frasco de... pepinos. Alice adorava colocar rodelas de pepino na sua torrada matinal. Sua mãe considerava o paladar da filha um tanto incomum, mas gostava de vê-la feliz, então evitava comentar. Alice enfiou sua mão no saco de pães, e retirou segurando o pão ideal para ela. Coloca em seu prato, cortando em duas fatias com uma faca sem ponta. Ela pega uma fatia de presunto e uma de queijo, colocando-as em seu sanduíche. Ela olha para sua mãe, e ao perceber que ela estava com foco total no fogão, rapidamente pega mais uma fatia de queijo que é colocada sobre a pão. Alice gosta do queijo derretido em sua torrada. E então, chega a hora de seu ingrediente secreto: as rodelas de pepino. Ela abre o frasco de pepinos com certo esforço, e mergulha sua mão na água conservante, pegando um pepino e colocando no seu prato, ao lado do sanduíche, ainda aberto. Alice pega a faca, e começa a cortar o legume em finas rodelas.

-Você já pegou as suas coisas, Alice? - perguntou a mãe, virando a frigideira no ar, derrubando os ovos em um píres.

-Sim - respondeu a menina, com a voz lesada pelo seu foco na sua missão de cortar o pepino.

A mãe fecha os olhos e sorri. Ela realmente ficava feliz em saber que a filha estava preparada para o dia, apesar do convencional sono e preguiça da manhã de segunda-feira. Ela desliga a boca do fogão que aquecia a bebida, apreciada por ambas, e então pega a panela, com uma toalha protegendo sua mão do calor, enquanto segurava o píres com os ovos na outra mão, e então leva-os para a mesa. Ela serve a bebida em uma xícara azul, que estava ao lado do prato da menina, que acabara de concluir a missão, e logo juntou as dezesseis rodelas de pepino em suas mãos, e jogou decididamente para dentro do sanduíche, que então foi fechado, e levado até a torradeira.

Alice volta para a mesa. segurou a xícara com as duas mãos, mas nenhuma sequer encostando na alça, e então aproxima ela à sua boca, tomando um grande gole da sua bebida favorita, cuja espuma teria marcado a parte de cima de sua boca. No momento que pode se deliciar com tal bebida, um grande sorriso se formou em seu rosto, combinando com os olhos fechados mostrando sua alegria. E então, acaba voltando a pensar naquilo que tivera visto na noite passada. Ela apoia a xícara na mesa, ainda segurando-a enquanto refletia, refletia sobre a maior dúvida que teve nesses anos: o que era aquilo? Ela tinha que descobrir, e iria com a ajuda de seus amigos, que ajudariam-na no momento que ela chegasse na escola. Mas como ela se explicaria? E mais importante: como ela iria fazê-los acreditar? Essas perguntas ecoavam na mente de Alice, ela acreditava que sua palavra era o suficiente para que eles acreditassem, mas e se não? De que outra forma ela iria conseguir desvendar tal mistério, sozinha seria impossível.

Seu pensamento é interrompido pelo apito da torradeira. Ela balança a cabeça, tentando voltar à si, e então levanta da sua cadeira e vai até a torradeira. Ela abre, e toma o seu lanche quente, comendo enquanto volta ao seu assento, sentando-se e apoiando os cotovelos à mesa, enquanto dá uma grande mordida em seu sanduíche, mas acaba queimando as laterais da sua boca.

-Ai! -gritou ela, e com o estridente som que produziu, assustou a sua mãe, que acabou batendo na sua xícara e derrubando a bebida, que logo se espalhou por toda a mesa.

A mãe iniciou uma expressão de raiva, que logo se desfez. Aquilo era algo que Alice gostava na mãe, ela raramente se estressava com alguma ação da filha, por mais que as vezes a menina merecesse uma bronca. Sabrina de Amusant trabalhava como diretora em uma creche, embora não tivesse muita paciência com crianças pequenas. Quer dizer, foi com as atitudes infantis e estressantes de crianças com menos de cinco anos que Sabrina aprendeu a ter paciência com basicamente tudo. Além do bom salário que ganha como diretora, também conta com a pensão de cinco mil reais que Alice recebe de seu pai que abandonara ambas em uma pequena cidade do interior. O dinheiro é muito, logo as garotas conseguem aproveitar a vida ao máximo, fato que dá muita inveja aos colegas da pequena menina, que faz com que ela seja um tanto excluída, contando então somente com o apoio de seus dois amigos.

-Pegue um pano, já - disse Sabrina para Alice.

-Certo - respondeu a menina, que se levantou e logo foi à frente de um pequeno armário, abrindo ele e vasculhando com a mão, em busca de um pano, derrubando outras coisas como garrafas de detergente ou esponjas no chão.

Ela retorna com um pano, que é entregue à mãe. Sabrina se levanta, com o pano em mãos, e então começa a esfrega-lo pela mesa, limpando a bebida quente. Ela olha para os lados, parece estar procurando por algo. E então, olha para o relógio que ficava acima da porta.

-Estamos atrasadas - disse ao perceber que faltavam apenas vinte e três minutos para que começassem as aulas de Alice - Vamos, coma o seu sanduíche no caminho.

Ambas se levantaram de suas cadeiras. Sabrina correu até a bancada onde normalmente deixa sua bolsa e seu chaveiro, pegando-nos. Alice foi até sua mochila, enquanto segurava seu sanduíche com uma mão, lamentando pela dor das queimaduras em sua boca, e logo pega sua mochila com a outra mão, apoiando a alça em um de seus ombros. Sabrina, com sua bolsa e chaves em mãos, sai da casa pela porta da cozinha, deixando-a aberta para Alice.

A menina foi até a porta. Estava com a mochila e seu fiel sanduíche em mãos. E acima disso, tinha um grande mistério em sua mente, que deve ser solucionado em breve. Ela apaga as luzes da cozinha, usando o interruptor ao lado da porta, e ao sair, fecha a porta, sabendo que muitas portas seriam abertas a partir daquele momento.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Feb 14, 2019 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

O Mistério da Meia-NoiteOnde histórias criam vida. Descubra agora