O efeito doppler com que aquele senhor estava contando não viria, o som não ficaria mais baixo pois a cantoria era bem em frente a sua casa, e ele não poderia simplesmente mandar todos calarem a boca, pelo menos achava que não. Sentado num sofá velho, vestindo o mesmo pijama que já não lavava há três meses, ele remexia os dedos, entrelaçando-os e apertando, como se estivesse em agonia. "Bate o sino pequenino, sino de Belém, já nas..." , ele fechou a janela com impaciência, fazendo um barulho no quarteirão, interrompendo quem quer que estivesse lá embaixo.
— É natal! É Natal! — disse ele remendando a própria voz — Ah cala a boca! Já é quase meia noite e esses molambentos não param com essa maldita cantoria! — seu grito ecoou pela sala empoeirada, que era mobiliada com um simples sofá, uma mesinha de centro e uma estante vazia. A luz se mantinha apagada enquanto divagava. Ele espirrou, fazendo mais um eco, sabia que não tirar o pó pioraria sua alergia, mas não tinha ânimo ou paciência para tal coisa. Ele caminhou até a cozinha, fazendo barulho no assoalho velho, apertou o interruptor que demorou a funcionar, como se a eletricidade pudesse ranger naqueles velhos fios, a luz se acendeu, passou pela mesa enfestada de cupins, abriu uma das portas do armário, e antes de enfiar a mão lá dentro uma ratazana saiu voando de lá, lhe dando um baita susto.
— Maldito animal asqueroso! — ele gritou pisoteando o assoalho, a fim de esmagar o animal que sumiu tão rápido quanto apareceu, ele voltou ao armário, pegou um cereal velho, uma tigela, abriu a geladeira empoeirada e pegou um vidro de leite, sentou-se a mesa e agiu como se estivesse tomando café da manhã. O cereal mole como uma batata frita passou pelos seus dentes perfeitos numa mastigação insossa, ele engoliu, claramente insatisfeito, seu cabelo perfeitamente penteado e suas roupas bem passadas eram as únicas coisas "certas" ali.
— Quando foi que tudo ficou tão errado? — perguntou ele a si mesmo, olhando pra torneira pingando na pia — Esse lugar devia me dar medo, mas é o meu refugio rabugento há um bom tempo... — engoliu a ultima colherada, e uma lagrima salgou aquela tigela.
— Pai?! O senhor está bem? — perguntou sua filha, balançando seu ombro, estavam todos olhando pra ele, a sala apertada com todos os seus filhos e netos, ambos pareciam ter sido interrompidos no meio de uma canção. Uma arvore enfeitada com luzes no canto o lembrou do que estavam comemorando, as crianças é claro não contiveram a ansiedade de abrir seus presentes.
— Oi, estou bem, o que foi? — disse ele, tirando as mãos dos braços de sua poltrona e apoiando nas pernas.
— O senhor estava chorando, está tudo bem? — perguntou seu filho do outro lado da sala no sofá.
— Eu estou bem, foi só um cisco que caiu no meu olho... — disse ele fingindo coçar o olho — E essa maldita visão que não melhora também...
— Você tem que usar os seus óculos pai! — disse a filha que o tirou do transe.
— Não, aquela coisa fica machucando meu nariz — disse ele.
— Eu já disse pro senhor que posso comprar outro — disse ela.
— Não! Não precisa...
Outro espirro, que fez a poeira sob a mesa se espalhar, ele ouviu os passinhos da ratazana no andar de cima, resmungou e se levantou, largando a tigela na mesa, e voltando pra sala. Ele apertou o interruptor na tentativa de acender a luz, o que não funcionou.
— Ah pronto, agora eu tenho que trocar a lâmpada! — disse ele, indo até a janela, abrindo-a e observando as pessoas lá embaixo — Que engraçado, aqui minha visão está perfeita, mas onde é aqui? — então ele reparou em algo lá embaixo, as pessoas não estavam mais cantando, mas sim trocando presentes, rindo e bebendo, porém não eram estranhos, eram seus filhos e netos. "Porque eles estão comemorando e bebendo na rua?" pensou ele.
— Ei! O que vocês estão fazendo aí?! — gritou ele pela janela — Ei! — "Eles não estão me ouvindo" pensou ele — Tenho de ir até lá... — ele foi até a porta, girou a maçaneta, mas ela se manteve travada — Mas que porcaria! — ele sacudiu a porta — Abre porcaria! — não funcionou.
— Pai? Pai!
— Oi! — respondeu ele.
— Você está distante hoje... Quer peito de Peru? — perguntou ela. Ele se lembrou cereal mole como batata frita velha.
— Quero sim! — disse ele.
— Olha, parece que você se animou hein! Devia estar com fome! — disse ela. "Onde foi que eu comi um cereal tão ruim?" pensou ele. Ele observou sua filha fatiar o peru na mesa de ceia, que estava farta como nunca.
— Obrigado — disse ele. Espetou o garfo e comeu com presa, a carne branca e suculenta quase derretia em sua boca. Terminou em minutos, colocando o prato na mesinha ao lado.
Outro espirro, ecoando pela casa vazia e empoeirada. Ele gritou.
— Porque estou aqui de novo! — disse ele, chutando a porta. Olhou pra janela outra vez. Eles ainda estavam lá, Charlie com uma camisa, sempre querendo se manter o mais formal possível. Elaine com seus cachinhos, bondosa e preocupada com tudo e todos ao mesmo tempo, e seu marido Carlos, apenas passando o olho em tudo e mantendo-se informado pelo celular enquanto bebia. E Jonas batendo papo com mais um garota a qual ele podia fracassar outra vez numa tentativa de namoro, pelo menos ele continuava tentando, agora, a qualquer momento, não no dia 2 de janeiro. Seus netos, que ele sempre esquecia o nome, duas gêmeas morenas e um garotinho loiro filho de Elaine. "Eu preciso sair daqui" pensou ele.
Ele sentiu sua calça ser puxada pela barra, olhou quem o estava chamando e deu de cara com o garotinho loiro, que devia ter uns sete anos, ele lhe estendeu uma caixinha de presente, verde e enfeitada com uma fita azul.
— Feliz natal vovô! — disse ele, exibindo um sorriso. E pela primeira vez naquela noite um sorriso surgiu no rosto daquele velho, cuja mente nem sempre permanecia aqui.
— Obrigado Thomas! — ele colocou o presente ao lado, sem perceber que o estava colocando em cima do prato. Abraçou o garotinho e bagunçou seu cabelo.
— Nossa pai, é a primeira vez que você lembra o nome dele! — comentou Elaine.
— É verdade! — disse ele, rindo — Vamos ver o que é — ele abriu a caixinha, tirou o embrulho de papel seda e revelou o um óculos, preto, com verdade nas laterais, lentes grandes — Mas olha só! Eu adorei!
— E é o que o senhor estava precisando hein! — disse ela. Ele riu, percebendo a ironia. Abriu os óculos e...
— Tem de funcionar dessa vez! — disse ele, quase desistindo de fugir daquele lugar nojento. Girou a maçaneta e...
Os óculos se encaixaram perfeitamente, deixando o campo de seu foco amplo e nítido, e assim ele enxergou direito pela primeira vez naquela noite a sala enfeitada. A estrela acima da arvore foi a primeira coisa que chamou sua atenção, logo depois das crianças abrindo os presentes abaixo, Charlie ajeitando a gravata, Elaine sendo interrompida a toda hora por Carlos que queria sua atenção, e Jonas finalmente beijando a garota que convidou para a Ceia. Estava tudo perfeito, "Eu estou livre, finalmente" pensou ele, "Acho que de fato é natal".
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Histórias De Ultima Hora Inspiradas Por Sugestões De Um Lugar Mágico
General FictionEssas histórias são parte do concurso semanal Magic Reading, que é baseada em temas novos toda semana, e escrevemos com base nisso.