Hóspede inesperado

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 Percebi que não estaria sozinho àquela noite quando a porta do meu apartamento despontou no corredor, semiaberta.

Apenas duas pessoas tinham as chaves de casa. Meu pai e meu irmão. Em ambos os casos, conhecendo eles tão bem quanto pode um caçula conhecer, seriam horas de bate papo.

Eu teria companhia, mas excepcionalmente aquela noite eu não queria estar junto de outra pessoa. Eu estava cansado e querendo absurdamente entrar, tomar banho, comer e dormir, nessa estrita ordem, fazer sala e conversar não estavam em meus planos.

Não mesmo. Entretanto eu sabia, como sempre soube, que se um deles vinha me visitar, silêncio e sono seriam um objetivo distante de alcançar.

Ao contrário de mim, aqueles dois eram maritacas sem controle e embora eu os amasse, às vezes queria ser apenas um avestruz para meter a cabeça em algum chão macio só para aliviar minha mente, eu era um calmo contador, não nasci para a conversa como meu pai, um professor aposentado ou meu irmão, publicitário. Eu era o nerd, o silencioso, o amante irrevogável da paz e do silêncio. Sempre brinquei que fui adotado. Meu pai respondia toda às vezes com seu comum sorriso doce e fala mansa "Você só não lembra, mas você e sua mãe são iguaizinhos, meu filho"

Sim, eu não me lembrava, ela morreu quando eu tinha apenas três anos, minha memória cheia de falhas só retinha seus sorrisos suaves e seu cantarolar incessante na cozinha de casa. Ela era uma cantora amadora e eu amava sua voz contralto. Em minha mente ela sempre me sorria.

Bem, vamos lá!

Pensei já derrotado indo para a porta, abrindo a folha de madeira e entrando em minha sala pequena e aconchegante.

Havia poucos caprichos dos quais eu me permitia usufruir. Um deles era a decoração de casa, já completavam quatros anos que eu morava sozinho e tornar minha casa meu cantinho pessoal e convidativo era meu luxo pessoal. Para olhos estranhos poderia parecer mais uma tenda cigana do que uma sala, mas eu amava a forma em que eu tinha organizado aquele espaço. Em vez de sofás, almofadões espalhados pelo ambiente, ao invés de estante e aparelhos eletrônicos, havia baús e um pequeno raque abarrotado de livros, e em vez de quadros comuns, minhas paredes eram forradas de obras renascentistas, cópias quase perfeitas das pinturas que eu amava.

Todos os dias, quando eu atravessava a porta, a primeira coisa que eu fazia era respirar fundo e me jogar em uma das almofadas, contudo desta vez eu fiquei paralisado diante do que tinha a minha frente.

Meu irmão estava ali, como eu já imaginava, com seu sempre e único jeito despojado e jeans rasgados, porém não estava sozinho, junto dele, um cara que nunca vi antes estava sentado completamente à vontade no almofadão de centro e segurava uma das minhas fotos de família na mão. Normalmente ela ficava sobre o balcão que dividia a sala da cozinha americana. Era uma foto em que eu e meu pai riamos enquanto jogávamos xadrez. Era minha preferida e ninguém colocava a mão.

Contudo ao invés de eu arrancar a moldura da mão do estranho como eu faria em outra ocasião, dessa vez eu nem me dei ao trabalho de me mover. Seus olhos negros capturaram os meus e por alguns instantes eu me vi assombrado pela dor que havia neles.

Meus poucos amigos diziam que eu era muito sensitivo com os sentimentos alheios, com o tempo eu passei a simplesmente não absorver essas emoções, mas naquela noite foi impossível. Aquele homem, à menos de seis passos de mim, tinha o coração estraçalhado, um olhar de uma pessoa a beira do precipício, alguém cuja dor era tamanha que apenas os olhos poderiam dar vazão a tanta intensidade.

Ele estava no precipício, e parecia prestas a pular.

—Lu! Desculpe trazer alguém para sua casa assim de repente, sem avisar, mas era uma emergência. O Sehun precisava de um lugar para ficar e você sabe que com as obras em casa nem mesmo eu tenho ficado lá e na casa do pai não tem espaço nem para o gato, daí pensei que talvez você não ligasse e... Bem, você tem espaço aqui.

À Primeira VistaOnde histórias criam vida. Descubra agora