Carmen Rios.

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algumas palavras,sim, são sementes e levam consigo a anatomia da natureza humana. residem nessas, aperitivos de violência, velocidade, força, tempo (fecundam no ar, na terra na ausência, toda a brasa e o peso do verbo existir. eu existo, nós existimos, logo somos uma massa de liquido aminótico), palavras que brotam nos gomos do espaço e as vezes dirigem-se aos ouvidos de um qualquer. foi o caso com Ribamar José, funcionário publico, 1,90 de equilibradas alegrias e tragedias. no drama, discurso, oficio, era um homem redondamente comum. nordestino, moreno, veio ao Rio de Janeiro, tentar a vida. e sua vida passava-se entre papeis abarrotados de tédio, café com pouco açúcar, conversas nas repartições e moderada doses de álcool, ao final de semana, quando saia com os poucos amigos.

o caso ocorreu em 27 de Maio de 1976. ao fim do expediente, Ribamar tomou o bonde e desceu na avenida Avenida Isabel. sentia no ar a ferrugem urbana. encontrava-se em meio ao caos estruturado. passando um sinaleiro, foi assaltado por uma dessas palavras, quando duas delas bateram seco na porta de sua consciência: Cármen Rios.

um nome. um nome demonstrou todo o caldo primitivo da vida. expôs a ridiculosidade dos ídolos. despedaçou o veludo da normatividade. trouxe a luz do dia as formas brutas e intalhaveis da matéria da qual é feita a realidade da mundo. um nome, duvidou da realidade do mundo. num instante, um enjoo de gravidez tomou conta de suas interioridades. tudo que fora vivido antes, era um silencioso preparo, para aquele descobrimento. a sucessão de acontecimentos, finalmente colidia-se com o futuro planejado. caminhava agora, com uma grave falta de solidez. reconheceu no seu fundo, uma solidaria companhia de instintos animalescos.

caminhando ao apartamento, sua vontade era correr. correr num gesto de desorganização. entrando na residencia, constatou a amplidão da sala. poças vivas de desespero faziam dobrar o edifício. a pronuncia do nome, era um segredo dentro da noite. um subsolo poeirento e amedorentador. procurou descansar. contudo, como um embrulho de chumbo o nome pesava nos campos da mente. deitou-se. sentiu uma fome que devorava as entranhas. uma fome funda, que traduzia aspectos até então impossíveis. não a fome que procura o alimento. antes uma fome de coisas intangíveis. o vazio, parecia ter roubado-lhe os órgãos. andava agitado pelos cômodos. a face neutra do cotidiano, havia sido esbofeteado e o sangue coloria a visão que era agora uma pintura semi realista de uma realidade divergentes dos dias comuns.

pensava no nome e inventava mulheres e as chamavam de Cármen Rios. louras, morenas, ruivas, de todas as cores, tomava todas hora como amantes, irmãs, cúmplices, noiva morta etc. fascinado pelo clarão contido no nome, varreu a madrugada, tentando recordar-se se já havia conhecido alguma Cármen Rios. constatou que não. sentia a necessidade urgente de encontrar, em algum mundo possível, Cármen Rios. seria agora sua vida dedicada a essa procura. o querer dessa realização instalava um proposito fixo.

com muito custo adormeceu e ao amanhecer, imagem e som estavam desajustados. se sonhara ou não, desconhecia, mas era certo que algum sonho distante, havia se infiltrado no tempo. finalmente o fantástico havia entrevido no real. lavou o rosto, escovou os dentes, sentindo-se atraído por cada silaba do grande nome. alegria ou amor, não era nítido o que sentia. porém, evidente que encontraria a resposta. de alguma forma até então desconhecida, mas encontraria. era o que suas mais sinceras intuições diziam. mas até lá, como conviver com a falta de resposta o expediente diário seria inútil. nada disso o ajudaria a encontra a resposta. precisava, agora, encontrar resposta. as demais vivências não eram mais atraentes. após o café, tomou o bonde.

desceu do bonde e caminhou alguns quarteirões. depositou os olhos aos céus e viu nuvens comprimidas num só ponto. nuvens densas, cheia de teor alcoílico, protestando contra o império do sol. foi recortando as ruas e quando deu por si, estava de frente ao Palacete das águas. resolveu entrar. havia uma represa. arvores que estouravam vida e ociosidade. pássaros que interpretavam o drama cotidiano. crianças brincando de ciranda. logo, esqueceu o compromisso do expediente. quis ser menino. também queria voar no bico de um pássaro. queria subir para além do mundo. ser uma criatura alada. durou minutos essa contemplação. verificou que ainda havia vida fora do escritório. seguiu até a borda da represa. nesse momento, as cortinas do tempo abriram-se, a represa tornou-se absurdamente encantadora. concentrada e luminosa, como uma lagrima. o vento era verde e convidava a atirar-se ao fundo das águas. contudo não era um convite ao suicídio e sim um doce chamado para entrar na cascata de cor que havia no fundo da represa. o vento o chamava: meu filho, meu filho, mergulha na amplidão, entra no que está dentro e conhece de dentro tudo o que há de fora.

jogou-se, na represa. não tentou o nado. foi naufragando. havia no fundo, uma cascata onde velhos arpões banhavam-se. de um minuto para outro, tudo virou um grande sertão.o céu emitia um leve som de sino rouco. o sol castigava, como castiga em Argel. tudo era desolado, e não deixava nem mesmo espaço para um anuncio de vida. o silencio era onipresente. compreendeu-se sozinho. em estado de sitio. constatou que era um animal biológico. sentiu sede. sua linguá apodrecia. o desespero o iniciou em uma caminhada. teria ele escolha de deparar-se ou não com aquele nome? seria ele livre para não entrar na represa? sentia uma tragedia incandescente. começou chover areia. sua pele desbotava e sua cor ia ficando pelo caminho. pensava agora nos universais humanos. gritava por alguém e tapava os ouvidos para não ouvir o eco. horas depois, percebeu que andava em círculos. queria fugir daquele lugar. mas de certa forma pertencia aquele estado de coisas. sofria. mas sofria, sentindo que era necessário. mesmo o sofrimento era absoluto. mas no fundo, aceitava o martírio, sentia que despedira-se de uma mão consoladora e seguia sozinho até um sumo encontro. sentiu nos céus, a face redonda de uma mulher irada. era maior que o sertão. Ribamar, não poderia de forma alguma escapar daquela presença. um monstruoso medo o molhava. convertia seu corpo, num ser andrógeno e distante. sua infância tecia memorias. voltou a sua natureza bruta. olhou as mãos, estavam manchadas de sensibilidades. escorria nos dedos sentimentos. desprotegido, tencionou chamar pela mãe. repudiou a severidade do pai. suas roupas decomporão-se. agora estava nu. próximo morrer no sertão.

ao longe, a noite caia. a noite deslizava para o fundo da alma, de Ribamar. a noite o paralisou por um instante. recuperado continuo caminhando. no horizonte no alto de uma planície uma luz denunciava um grande jardim. poderia ser uma miragem devido ao cansaço. decidiu ter como objetivo subir a planície e verificar. o corpo pesava. subiu com muito custo a planície. quase a entrada do jardim, caiu de joelhos. procurava o ar, que o fugia. desgastado, atravessou o portão de ferro. o tempo mudou. caia uma neve fina. congelava o sangue. aliviava as queimaduras do sol. um resto vitalidade contorcia-se dentro do corpo. entrou no jardim, pelo um caminho feito de pedras e folhas. a certa distancia percebeu uma estatua. novamente o medo apoderou-se de Ribamar. sentiu o absurdo de estar num país distante e inexoravelmente fadado a solidão, de ser único em vida. aproximou-se da estatua. era um anjo contido de mármore e alvura. tinha olhos pintados de azuis, que mais pareciam dois copos de mar. pouco cabelo. quase dois metros de altura. levava na mão esquerda uma espada. um mistério cortava o ar.

perdido na incompreensão do momento, tocou o rosto do anjo. e nos seus dedos ficou um pouco do mármore. olhou o jardim em volta. finalmente uma luz de compreensão: reconhecia aquele lugar. em verdade, já estivera varias vezes, naquele mesmo jardim. esse jardim era seus sonhos de menino. temeu que a criança dentro dele estivesse a sonhar aquele momento. o anjo era de uma beleza singular. o anjo transmita alguma coisa, que um dia ele teve e perdeu. sentiu uma alegria infernal. abraçando o anjo, sintetizou o momento:

-eu sei. eu sei. todo esse país é um pedaço de mim. eu sou pedaços mutilados, que formam uma totalidade. totalidade que por vezes desconheço. agora eu sei: a ignorância de si mesmo, é o mais perfeito arauto do que o homem é.

chorava. o anjo com os olhos fixos, era doce inquisidor. o anjo parecia descobri nos olhos de Ribamar, o que ele pensava.Rimabar, correu até a ponta do penhasco, jogou-se. estava completo a travessia. a imagem do anjo, vingara todo o processo.

apareceu, no centro da cidade. vestido, limpo, alimentado, pronto para mais um dia de trabalho.

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⏰ Last updated: Dec 31, 2018 ⏰

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