Amélia é uma garota de sorte. Ah, é sim. Nunca teve seu carro roubado, nunca perdeu um celular. Era sempre a escolhida como favorita em seu trabalho, os sobrinhos amavam, as mães ficavam com inveja da moça que, além de bela e simpática, era muito bem de vida.
A única situação que não lhe era favorável era a fertilidade.
Sim, Amélia era estéril. Não, não teve câncer, nenhuma doença corroeu o seu útero ou desfigurou seus ovários. Amélia apenas nasceu assim, sem poder procriar.
Adotar? Jamais! O sonho de ter um filho era biológico - se não fosse com seu DNA, não queria nem pensar na ideia de criar "filho dos outros".
E foi assim que, com audácia, desrespeitou o toque de recolher.A história é simples. Quem não quer um milhão de reais? Amélia almejava o dinheiro. Almejava, porque havia lido na internet, através de um amigo, que sua "doença" havia cura.
Sim, pagando exatamente um milhão de reais, você poderia modificar o seu DNA e ter o seu filho tanto desejado.
Ficou com a pulga atrás da orelha. Como confiar num anúncio de internet? Como arranjaria todo o dinheiro? Ela nem sabia da aposta que rolava clandestinamente, indiciada por um anônimo.
Ligou para a clínica para saber sobre todo o procedimento que ocorreria caso ela pagasse o valor. A voz suave no outro lado da linha explicou-lhe como funcionaria: disse que, primeiramente, eles iriam colher o seu DNA e encontrar o erro genético. Logo após, concertariam a sequência de amino-ácidos a partir de uma célula tronco e então implantariam nela que, após uma semana, poderia tentar engravidar sem problemas.
Perguntou então como poderia arranjar a quantia de dinheiro, porque, mesmo sendo bem de vida, ela não tinha um trevo da sorte colado na testa. Era rica, mas ganhava o suficiente para se sustentar e comprar móveis caros, mas não tão caros.
A voz na linha telefônica então lhe contou sobre a aposta que estava acontecendo. Disse que, se ela provasse à recepcionista que sobreviveu a um dia fora de casa dentro do horário de recolher, que ela então teria sua consulta gratuita. Mas a "promoção" apenas valia para essa noite, e ela não poderia contar a ninguém.
Amélia não pensou uma vez. Pensou duas, três, quatro, e, depois da ligação, decidiu que iria para casa mais cedo - para conseguir estabilizar-se com o excesso de informações que havia recebido.Entrou na garagem, desligou o seu carro e subiu as escadas. Tomou um banho inicialmente relaxante - até sua mente inundar-se com os pensamentos que lhe atordoavam novamente. Arriscar a vida para ter o direito de procriar? Seria válido? E onde ela iria se esconder? Sabia que a regra seria ficar na rua a noite inteira. Talvez algum beco? Mas o fato é que não tinha noção nenhuma de lugar. Sua vida é tão quadrada - a quebra de rotina ocorrera poucas vezes em sua monótona vida. Amélia não conhece as ruas da própria cidade. Ela nem sequer sabe o que acontece nelas ao anoitecer!
O medo do desconhecido a prendia naquela casa, mas ela sabia que a recompensa seria a melhor. Desde criança brincou com bonecas, mal sabia ela que nunca poderia ter a sua verdadeira. Valia mesmo arriscar-se para ter uma vida nas mãos?
Saiu do banheiro vestindo seu pijama. Foi até seu quarto, puxou o roupão do marido e vestiu-o, assim como seus chinelos.
Foi para a cozinha e preparou a janta, antes ligando o pequeno rádio que encontrava-se em cima do balcão. Conectado a um pen drive, músicas do estilo blues enchiam o cômodo com sentimentos carregados, provenientes das batidas do som. Ela rebolava conforme o ritmo, tentando esquecer dos problemas que perpetuavam em seu consciente.
Ouviu o barulho do molho de chaves girar na fechadura quando já estava terminando de temperar a janta. Fez questão de servir os pratos depois de cumprimentar o marido, que fora tomar banho.
Jantaram e, após entregar-lhe o roupão e os chinelos, sentaram-se no sofá da sala, passando a assistir o telejornal. Ele enrolou-a com os braços, cobrindo-a do frio que invadia a casa pelo vidro da janela aberta.
Sete desaparecidos. Suas fotos em sépia, destacadas em um fundo preto. Os nomes em branco, junto dos telefones dos familiares. O coração de Amélia bateu rápido por alguns instantes. Ela estava insegura, mas sentia que necessitava fazer aquilo.
E faria. Já estava decidido - esperaria apenas o seu marido dormir, e sairia porta à fora.O arrependimento bateu quando, vestida toda de preto, saiu às ruas assim que o sino tocou. Havia deixado o marido no sofá da sala, dormindo. Mandou uma mensagem passando seus afazeres do trabalho para seu secretário, e então, saiu. Arriscou-se pela gestação.
Primeiramente, sentiu-se amedrontada. Mas deixou-se sentir a adrenalina em seu sangue de forma mais amena. Correu, soltou os cabelos e correu. Sentiu a liberdade em estar do lado de fora como um supetão. Abraçou a ideia de que seria fácil esconder-se por tanto tempo, já que a rua estava vazia.
Mal sabia ela que as câmeras desativadas não estavam lá tão desativadas assim, e que, mesmo a rua de sua casa estando vazia, muitas outras estavam passando a encher de gente.
O maior pecado de Amélia foi não ter se informado sobre os meninos da noite.
O motivo?
Ninguém usa preto.Ela correu, foi para um beco escuro. Sentiu-se incomodada por um tempo, mas foi conformando-se assim que o tempo passava. Acomodou-se, ficou conversando consigo mesma em outra língua mentalmente. Talvez havia alcançado sua insanidade - ter a sua atitude era realmente pedir para receber o título de louca. Arriscar-se em troca de um ser humano a mais para toda essa burocracia? Nem pensar! Pra que jogar-se no escuro por alguém que pode nem chegar a vir nascer?
Mas Amélia sonhava em procriar. Ser mãe seria mais do que apenas gerar uma vida, seria deixar seu sangue presente na Terra por mais uma geração. Era marcar território, demonstrar que seu sobrenome não seria apagado. Era cuidar, desenvolver emoções que apenas mães sentem, ter mais responsabilidade, crescer espiritualmente.
Arriscou-se pela vida, acabou caindo na boca do inferno.Amélia estava sentada. Deveriam ter passado o que? Duas horas? Que seja. Ela não esperava pelo o que ocorrera em seguida: As luzes - todas as luzes - da rua acenderam-se. Como holofotes, o céu aparentou até mesmo ficar mais claro com tanta luminosidade.
E então fora descoberta. Por infortúnio dela, um homem sem dó nem piedade encontrou-a. E ela o conhecia muito bem.
"O que você está fazendo aí? Perdeu o horário na rua, rodando bolsa?"
Ela havia congelado. Estava agora de pé, com toda a sensação de liberdade jogada por água a baixo. O medo de antes voltava à tona, agora com o dobro ou até mesmo o triplo de intensidade. Calou-se, perdeu a voz. O homem insistia:
"Diga logo, Amélia. O que você faz fora da rua neste horário? Você sabe sobre o toque de recolher, vadia".
Ela então explodiu. Disse o motivo que lhe trazia para esse arrependimento. Contou sobre a clínica, sobre o desejo de engravidar. O homem, rindo de deboche da colega de trabalho, mostrou as armas que carregava nas mãos - talvez para a sua sorte fossem armas brancas. Se soubesse sobre defesa pessoal, Amélia poderia até tentar desarmá-lo.
"Problema pra ficar prenha? Isso a gente resolve na marra."
Ele aproximou-se dela faminto, deixando explícito as suas intenções. Amélia tentou relutar, mas o único som que ouviu foi o de sua calça sendo rasgada à força.Amélia não mais acordou. Após a violência sofrida, foi literalmente jogada no chão. Ele disse que depois voltaria para buscá-la e fez, porém, com companhia.
Ela não tinha mais voz para chorar, muito menos lágrimas. O rosto avermelhou-se, os olhos ainda mareados. Não se mexeu, apenas deixou que dois homens erguessem o seu corpo e a carregassem para onde quer que fosse.
Fechou os olhos, na esperança de que tudo aquilo fosse um sonho.
Fechou os olhos, para nunca mais abri-los novamente.Amélia morreu no dia 21 de maio de 2030, causa desconhecida.
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Guillvern
HorrorTodos na pacata cidade de Guillvern sabem sobre o toque de recolher. E quando eu digo todos, isso significa todos. Não tem um que não saiba, não tem um que esqueça. Todos na pacata cidade de Guillvern sabem sobre o toque de recolher. Cidade de Gu...