"Era uma vez, numa terra muito distante, um conde empobrecido e suas três filhas... "
- O Príncipe CorvoLittle Battleford, Inglaterra
Março de 1760A combinação de um cavalo a galope em disparada, uma estrada enlameada cheia de curvas e uma dama a pé nunca é boa. Mesmo na melhor das circunstâncias, as chances de as coisas darem certo são lamentavelmente baixas. Mas acrescente a essa situação um cão - um cão imenso - e, Anna Wren refletiu, o desastre se torna inevitável.
O cavalo em questão desviou subitamente ao ver Anna em seu caminho. O mastim, correndo ao lado do cavalo, reagiu passando por baixo do focinho do outro animal, e isso, por sua vez, fez o cavalo empinar. Cascos do tamanho de pires balançaram no ar e, inevitavelmente, o enorme cavaleiro perdeu o equilíbrio. O homem caiu aos pés dela como um gavião que se lançasse do céu, talvez de modo menos gracioso. Braços e pernas compridos se abriram com a queda, ele perdeu a chibata e o tricórnio, e aterrissou com um borrifo espetacular numa poça de lama. Uma parede de água suja se ergueu e a encharcou.
Todos, até mesmo o cão, ficaram imóveis.
Idiota, pensou Anna, mas não foi isso que ela disse. Viúvas respeitáveis, de certa idade - 26 anos dali a dois meses -, não lançam epítetos, por mais apropriados que sejam a cavalheiros. Não. De modo algum.
Em vez disso, o que se ouviu foi:
- Espero que o senhor não tenha se machucado na queda. Posso ajudá-lo a se levantar? - Ela sorriu através dos dentes semicerrados para o homem encharcado.
Ele não retribuiu o gracejo.
- Que diabos a senhora estava fazendo no meio da estrada, sua tola?
O homem se ergueu da poça de lama e se agigantou diante de Anna daquele modo irritante como fazem os cavalheiros para parecerem importantes quando percebem que fizeram papel de bobo. A água suja pingava no rosto pálido, marcado pela varíola, transformava-o numa visão terrível. Cílios negros amontoavam-se de modo exuberante em torno dos olhos de esmeralda, mas isso dificilmente faria esquecer o nariz e o queixo bonitos ou os lábios finos e rosados.
- Sinto muito. - O sorriso de Anna não vacilou. - Eu estava indo para casa. Naturalmente, se soubesse que o senhor precisaria de toda a extensão da estrada...
Mas pelo visto a pergunta dele havia sido retórica. O homem se afastou, batendo os pés e dispensando Anna e sua explicação. Ele ignorou o chapéu e a chibata e foi atrás do cavalo, xingando-o em voz baixa e monótona, mas estranhamente tranquilizadora.
O cão se sentou para observar o espetáculo.
O cavalo, um animal magrelo, de pelagem castanha, tinha manchas claras peculiares na pelagem que lhe dava, uma infeliz aparência malhada. Ele revirou os olhos para o homem e se afastou com passos hesitantes.
- Muito bem. Pode esquivar-se por aí como uma virgem ao ter os seios apalpador pela a primeira vez, seu pedaço revoltante de couro carcomido pelos vermes - murmurou o homem para o animal. - Quando eu puser as mãos em você, seu filho bastardo de um camelo doente e de uma égua paralítica, vou torcer seu maldito pescoço, vou sim.
O cavalo girou as orelhas de cores diferentes para ouvir melhor a voz amorosa de barítono e deu um passo incerto para a frente. Anna se solidarizou com o animal. A voz do homem feio era como uma pena passada ao longo de seu pé: irritante, e ao mesmo tempo, hipnotizante. Ela se perguntou se ele também falava dessa maneira quando fazia amor com uma mulher. Esperava que as palavras fossem outras.
O homem se aproximou o suficiente do cavalo assustado para segurar-lhe as rédeas. Por um minuto, ele ficou parado, murmurando obscenidades; depois, montou no animal com um movimento elegante. Suas coxas musculosas, indecentemente rebeladas pela camurça úmida, apertaram a barriga do cavalo enquanto ele virava o focinho.
O homem inclinou a cabeça descoberta para Anna.
- Madame, tenha um bom dia.
E, sem olhar para trás, afastou-se pela estrada, com o cão correndo ao seu lado. Em um instante, ele estava fora do campo de visão. Em outro, o barulho dos cascos já haviam silenciado.
Anna baixou o olhar.
Sua cesta estava na poça, e seu conteúdo - as compras matinais - estava todo espalhado pela estrada. Ela provavelmente a deixou cair quando se desviou do cavalo que se aproximava. Agora as gemas amarelas de meia dúzia de ovos escorriam para a água enlameada, e em um arenque a fitava de maneira sinistra, como se a culpasse por aquela aterrissagem indígena. Ela pegou o peixe e o limpou, esfregando-o com as mãos. Pelo menos, ele poderia ser salvo. O vestido cinza, porém, pingava lamentavelmente, embora sua cor não fosse tão diferente da lama que o cobria. Anna puxou as saias para afastá-las das pernas, antes de suspirar e soltá-las. Examinou a estrada em ambas as direções. Os galhos vazios da árvore acima de sua cabeça se agitaram com o vento . A pequena estrada permanecia deserta.
Anna respirou fundo e falou as palavras proibidas diante de Deus e de sua alma eterna:
- Filho da mãe!
Ela prendeu a respiração e esperou que um ou, mais provavelmente, uma pontada de culpa a atingisse. Nada aconteceu, e isso deveria deixá-la inquieta. Afinal, damas não devem xingar cavalheiros, não importa qual seja a provocação.
E, acima de tudo, ela era uma dama respeitável, não era?
Quando enfim chegou mancando ao seu chalé, as saias já tinham secado é formado uma confusão rígida. No verão, as flores exuberantes que enchiam o minúsculo jardim principal o tornavam alegre, mas, nessa época do ano, o jardim era praticamente lama. Antes que ela pudesse alcançá-lo, a porta se abriu. Uma mulher pequena, com chaços cinzentos nas têmporas, observava do batente.
- Ora, aí está você. - A mulher acenou com uma colher de pau suja de molho e, sem querer, lançou gotas na própria bochecha. - Fanny e eu fizemos ensopado de cordeiro, e eu acho que o molho dela melhorou um bocado. Agora mal dá para ver os grupos. - Ela se inclinou e murmurou: - Mas ainda estamos trabalhando nos bolinhos. Receio que eles tenham uma textura bastante incomum.
Anna deu um sorriso cansado para a sogra.
- Tenho certeza de que o ensopado estará maravilhoso.
Ela entrou no vestíbulo abarrotado e pôs a cesta no chão.
A outra mulher sorriu, mas em seguida franziu o cenho quando Anna passou por ela.
- Querida, um odor peculiar vem do... - Ela se calou e fitou o topo da cabeça de Anna. - Por que você está usando folhas úmidas em seu chapéu?
Anna fez uma careta e ergueu a mão para tocar o chapéu.
- Infelizmente, tive um ligeiro contratempo na estrada.
- Um contratempo? - Em sua agitação, Mãe Wren deixou a colher cair. - Você está machucada? Meu Deus, parece que seu vestido chafurdou em um chiqueiro.
- Estou bem, só um pouquinho molhada.
- Ora, temos que botar você de roupas secas agora mesmo, querida. E seu cabelo... Fanny! - Mãe Wren se interrompeu e gritou em direção à cozinha. - Temos que lavar. Seu cabelo, é o que eu quero dizer. Venha, deixe-me ajudá-la a subir os degraus. Fanny!
Uma garota com mãos e cotovelos avermelhados e uma massa de cabelos cor de cenoura em cima da cabeça entrou cautelosamente no vestíbulo.
- O que foi?
Mãe Wren parou nos degraus atrás de Anna e se inclinou por cima do corrimão.
- Quantas vezes eu já lhe disse para falar: "Sim, senhora?". Você nunca vai trabalhar numa casa-grande se não falar de forma adequada.
Fanny ficou ali, piscando para as duas mulheres, com a boca entreaberta.
Mãe Wren suspirou.
- Vá colocar uma panela de água no fogo. A Srta. Anna vai lavar o cabelo.
A garota correu para a cozinha; depois, esticou a cabeça para fora.
- Sim, senhorinha.
O topo dos degraus íngremes dava para um minúsculo patamar. À esquerda, ficava o quarto da mulher mais velha; à direita, o de Anna. Ela entrou no pequeno cômodo e foi direto para o espelho que pendia sobre sua penteadeira.
- Está cidade está cada vez pior - arfou a sogra atrás dela. - Os respingos de uma carruagem acertaram em você? Esses cocheiros de carruagem postais são simplesmente irresponsáveis. Acham que a estrada inteira é só deles.
- Difícil não concordar com a senhora - retrucou Anna enquanto examinava o próprio reflexo. Uma guirlanda desbotada de flores de macieira secas pendia da beirada do espelho; uma lembrança de seu casamento. - Mas, nesse caso, era um único cavaleiro. - Seu cabelo parecia um ninho de rato e ainda havia manchas de lama na testa.
- Pior ainda, esses cavalheiros a cavalo - resmungou a mulher idosa. - Ora, creio que alguns deles não são nem capazes de controlar seus animais. Terrivelmente perigosos. Eles são uma ameaça para mulheres e crianças.
- Hum. - Anna tirou o xale, batendo a canela numa cadeira ao se mover.
Olhou ao redor do pequeno cômodo. Fora ali que ela e Peter haviam passado os quatros anos de seu casamento. Ela pendurou o xale e o chapéu no gancho em que o casaco de Peter costumava ficar. A cadeira na qual antigamente ele empilhava os pesados livros de direito agora era sua mesinha de cabeceira. E até mesmo a escova de cabelo com uns poucos fios ruivos presos mas cerdas havia muito fora guardada.
- Pelo menos você salvou o arenque. - Mãe Wren ainda estava aborrecida. - Embora eu não creio que um mergulho na lama tenha melhorado seu sabor.
- De forma alguma - retrucou Anna, distraída. Seus olhos se voltaram para a guirlanda, que estava se desmanchando. Não era de admirar, pois sua viuvez tinha quatro anos. Coisa horrorosa. Ficaria melhor na pilha de lixo da horta. Ela iria descartá-la mais tarde.
- Isso, querida, deixe-me ajudar. - Mãe Wren começou a abrir o vestido na parte de baixo. - Vamos ter que limpá-lo com uma esponja imediatamente. Tem um bocado de lama na bainha. Talvez, se eu aplicasse um novo debrum... - Sua voz ficou abafada quando ela se abaixou. - Ah, isso me faz lembrar uma coisa: você vendeu minha renda para a modista?
Anna empurrou o vestido para baixo e o tirou.
- Sim, ela gostou bastante da renda. Falou que era a mais delicada que já tinha visto.
- Bem, eu faço renda a quase quarenta anos. - Mãe Wren tentou parecer modesta e limpou a garganta: - E quanto ela pagou?
Anna se encolheu.
- Um xelim e seis pences.
Ela esticou a mão para pegar um robe puído.
- Mas eu trabalhei cinco meses nela - disse, sem ar, Mãe Wren.
- Eu sei. - Anna suspirou e soltou o cabelo. - E, como eu disse, a modista considerou seu trabalho da melhor qualidade. Mas renda não dá muito lucro.
- Vai dar assim que aplicá-la num gorro ou num vestido - resumindo Mãe Wren.
Anna fez uma careta em solidariedade. Ela tirou a toalha de banho de um gancho debaixo das calhas, e as duas mulheres desceram os degraus em silêncio.
Na cozinha, Fanny esperava com uma chaleira com água. Ramos de ervas secas pendiam das vigas escuras deixando o ar perfumado. A antiga lareira de tijolos ocupava uma parede inteira. Do lado oposto, uma janela com cortina dava para a horta nos fundos. Uma plantação de alface avançava numa fileira verde amarela pelo minúsculo pedaço de terra, e nabos e rabanetes já estavam maduros havia uma semana.
Mãe Wren pôs uma bacia lascada sobre a mesa da cozinha. Desgastada pelos muitos anos de esfregadas diárias, a mesa se destacava no meio do cômodo. À noite, elas a encostavam na parede para que a pequena criada pudesse estender um colchonete de palha diante do fogo.
Fanny trouxe a chaleira com água. Anna se inclinou sobre a bacia, e Mãe Wren derramou água morna sobre sua cabeça. Anna ensaboou o cabelo, respirou fundo e disse:
- Infelizmente teremos que fazer alguma coisa quanto à nossa situação financeira.
- Ah, não diga que haverá mais economia, querida - resmungou Mãe Wren. - Nós já deixamos de comer carne fresca, a não ser a de cordeiro, às terças e quintas. E faz séculos que nenhuma de nós tem um vestido novo.
Anna percebeu que a sogra não havia mencionado as despesas com Fanny. Embora a garota supostamente fosse sua criada-e-cozinheira, na verdade era um impulso de caridade de ambas as partes. O único parente de Fanny, seu avô, morrera quando a menina tinha 10 anos. Na época, falou-se muito na aldeia em mandá-la para um abrigo, mas Anna interveio e, desde então, Fanny estava com elas. Mãe Wren tinha esperança de conseguir treiná-la para trabalhar numa casa-grande, mas até agora seu progresso fora lento.
- A senhora tem se saído muito bem com as economias que temos feito - elogiou Anna enquanto espalhava a fina espuma em sua cabeça. - Mas os investimentos que Peter nos deixou não estão indo tão bem quanto antes. Nossa renda diminuiu muito desde que ele morreu.
- É uma pena que ele tenha deixado tão pouco - falou Mãe Wren.
Anna suspirou.
- Ele não pretendia deixar uma soma tão pequena. Era jovem quando foi acometido pela febre. Tenho certeza de que, se ele estivesse vivo, teria feito render substancialmente as economias.
Na verdade, Peter havia melhorado suas finanças desde a morte do pai, pouco antes de seu casamento. O pai era advogado, mas alguns investimentos imprudentes o deixaram endividado. Após o casamento, Peter vendeu a casa na qual tinha crescido para pagar as dividias e se mudou, com a esposa e a mãe viúva, para um chalé bem menor. Ele trabalhava como advogado quando ficou doente, vindo a morrer 15 dias depois. E deixou a administração da pequena família por conta de Anna.
- Pode enxaguar, por favor.
A água fria desceu-lhe pela nuca e pela cabeça. Ela se certificou de que o sabão havia saído e, em seguida, espremeu o excesso de água do cabelo. Enrolou um pano ao redor da cabeça e ergueu o olhar.
- Acho que eu deveria procurar um emprego.
- Ah, querida, certamente não. - Mãe Wren sentou-se pesadamente numa cadeira na cozinha. - Damas não trabalham.
Anna sentiu sua boca se contorcer.
- A senhora prefere que eu continue sendo uma dama e nos deixe morrer de fome?
Mãe Wren hesitou. Ela parecia realmente refletir sobre a questão.
- Não responda - pediu Anna. - De qualquer forma, não vamos passar fome. No entanto, temos que encontrar um meio de trazer algum dinheiro para essa casa.
- Talvez se eu fizesse mais renda. Ou... ou eu poderia parar totalmente de comer carne - sugeriu a sogra, um pouco nervosa.
- Não quero que a senhora tenha que fazer isso. Além do mais, papai fez de tudo para que eu tivesse uma boa educação.
Mãe Wren se animou.
- Seu pai foi o melhor vigário que Little Battleford já teve. Que sua alma descanse em paz! E deixou bem claro para todos suas opiniões sobre a educação das crianças.
- Hum. - Anna tirou o pano da cabeça e começou a pentear o cabelo molhado. - Ele fez questão que eu aprendesse a ler, escrever e fazer contas. Eu até sei um pouco de latim e grego. Estou pensando em procurar um emprego como governanta ou acompanhante amanhã.
- A velha Srta. Lester é quase cega. Certamente o genro dela pode contratar você para ler... - Mãe Wren se deteve.
Ao mesmo tempo, Anna percebeu um cheiro acre no ar.
- Fanny!
A pequena criada, que estava prestando atenção na conversa entre as patroas, soltou um gritinho e correu até a panela do ensopado no fogo. Anna resmungou.
Outro jantar queimado.
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O príncipe Corvo | HS
RomanceAnna Wren está tendo um dia difícil. Depois de quase ser atropelada por um cavaleiro arrogante ela volta para casa e descobre que as finanças da família, que não iam muito bem desde a morte do marido, estão em uma situação complicada. O conde de Sw...