O Rancho

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   Os pés despidos batiam no chão molhado e escorregadio freneticamente. Respirar havia se tornado uma tarefa difícil. O pijama composto por um fino tecido estava encharcado e os dentes rangiam por culpa do frio. As pernas vacilaram, a lama estava por toda parte. Por quanto tempo ela ficara desacordada no meio da floresta? Um grupo de jovens a encontrou, ferida, encharcada e assustada. No hospital aonde fora levada, acusaram os adultos que cuidavam da criança, de negligência. Por muito tempo aquele acontecimento foi notícia na cidadezinha, o jornal ficara sabendo de tudo já que, todos ali valorizavam uma boa fofoca, sendo ela um acontecimento terrível na vida de uma jovem, ou não.

   — Deus não existe, madre.

   O som seco do tapa desferido contra sua face perdeu-se entre os murmúrios e súplicas que preenchiam o cômodo. Logo o rubor apareceu na bochecha atingida, e a garota acariciou o local dolorido. A senhora roliça e mal encarada deu as costas, enquanto vigiava as outras crianças no local.

   — Se ele existisse, deixaria isso acontecer comigo? — Desafiou novamente a autoridade divina, e como punição, recebera outro golpe contra sua face, todavia, desta vez a força aplicada com certeza fora maior.

   — Abaixe o vestido. — A madre ordenou, pegando um chicote de couro. — Ajuda. É isso que precisa, a ajuda de vosso senhor Cristo.

   Enquanto a fanática religiosa enrolava o comprimento do chicote em suas mãos, uma tentativa de fuga contra o castigo que estava por vir fora feita pela garota, que tinha apenas dez anos, mas coragem era de alguém que já vivera muito neste mundo. Ela correu, correu muito pelos corredores preenchidos por crianças e algumas freiras, até que uma delas a interceptou. O frágil e alvo braço foi puxado com tanta violência que a menina podia sentir que a qualquer momento ele iria se partir, sendo arrancado de seu corpo. Não ia adiantar gritar por ajuda, até mesmo as freiras que consideravam o ato errado, jamais iriam contra a palavra final da madre. Se ela havia decidido penalizar aquela criança, era um sinal enviado do próprio Deus. Ela berrou, esperneou e esbravejou contra sua algoz.

   Sua roupa foi rasgada com selvageria, e as costas reveladas com rapidez, mostravam-se alvo de recentes 'castigos divinos' — como assim chamavam. Uma, duas, três...quarenta chicotadas. Tudo isso enquanto era forçada a rezar o terço em voz alta pedindo perdão aos pés de uma estatueta enorme de Jesus Cristo.

   Clarice estava familiarizada com a dor. Anestesiada e abatida. Com apenas um mês e meio de residência no Lar Luterano para crianças em Bozeman, ela havia batido o recorde de punições cometidas em anos de existência do abrigo. Talvez, ela tenha sido o cavalo mais difícil de ser domado pelas freiras e a madre. Chamavam-na de concubina de satã, por conta de seu temperamento e cor de cabelo incomum, que pelo simples fato de ser meio avermelhado, ligavam aquela característica ao ser chifrudo e maligno.

   Aquilo tudo havia começado...ah sim. Quando seu pai morrera. Antes disso a vida de Clarice Starling era relativamente normal e pacata, sem nenhum acontecimento grandioso. Somente mais uma criança comum, amada pela pela família.

   — Os girassóis começam o dia virados de frente para o Sol, no leste. Conforme as horas vão passando, a flor o acompanha até oeste. De noite elas giram de volta para o leste, recomeçando o ciclo. — Thomas apontou para as flores amarelas, plantadas num jarro médio de barro. — É como você, querida.

   Thomas Starling adorava sua filha. Fazia questão de apresentar a criança para os colegas e conhecidos com o maior orgulho, exibindo aquela qual nomeava como 'a luz de sua vida'. Clarice significa 'a que é brilhante', 'luminosa' ou 'ilustre'. Nome que, fora escolhido a dedo por seus pais. Os dois sabiam que aquela criança estava destinada a grandes acontecimentos em sua vida e acreditavam que a pequenina seria uma grande mulher no futuro. Anos mais tarde, a própria menina comprovaria que a crença de seu pai estava errada. Clarice não atraia luz, e sim trevas. Foi em uma madrugada entorpecida que Thomas dera seu último suspiro de vida. Ele estava estacionado por coincidência em um mercado, que seria assaltado naquela noite. Dois sujeitos entraram no local e renderam os funcionários. O pai de Clarice era o chefe de polícia da cidade. Com certeza, um homem de muitos amigos e inimigos. É uma profissão arriscada.

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⏰ Última atualização: Jan 07, 2019 ⏰

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