A última viagem

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O homem permanecia em pé, parado como uma antiga estátua diante do quadro que repousava fragilmente na parede da galeria de sua vasta mansão, agora vazia, úmida e fria; seus olhos congelados miravam a pintura que agora era o único objeto que ostentava alguma cor, que destoava da tez pálida, doente e melancólica do homem que se prostrava lá, como uma gárgula, rodeada da riqueza material que já lhe fora tão cara: mesas de mogno, cristaleiras de pau-Brasil, estátuas de bronze, tudo agora coberto com o mais morto bege dos tecidos de algodão cru.

Enquanto estava lá, as únicas coisas que passavam por seus pensamentos o levavam à ironia de que sempre, em sua vida, valorizara tais objetos, disponíveis apenas àqueles que desfrutavam da mais alta riqueza, e que a perda de apenas uma, a de menor valor econômico e maior valor emocional, o levara à beira da ruína: Berenice, morta por um criado que cultivou a inveja dentro de si. Agora, aquela pintura era a única coisa que restava de sua beleza.

Não suportaria mais passar sua vida naquele local, cada peça, cada umbral, cada mobília, até as rochas que formavam sua morada o faziam lembrar Dela, tão brutalmente assassinada, por um qualquer que provavelmente jazia em uma forca na praça principal. Tinha que sair dali, encontrar outra morada, afastada, de preferência na tranquilidade dos montes, para então aguardar que a Senhora Morte unisse novamente os amantes.

Pegou sua pequena mala de viagem, as poucas coisas essenciais que queria daquele lugar, e saiu porta afora, abandonando a antiga mansão, outrora lar de grandes festas e bailes, agora praticamente um mausoléu, guardado permanentemente pela Berenice imortalizada na parede da galeria.

Subiu na carruagem que alugara, e durante a viagem pela cidade não disse uma só palavra, não sabia se sua tremedeira era consequência dos gélidos ventos do inverno ou da ansiedade que sentia por deixar sua vida para trás, junto com sua amada. O coche parou na entrada da estação de trem: um arco de tijolos de barro, uma bilheteria e alguns bancos de madeira. Despediu-se do cocheiro, pagou-o e seguiu para a estação, onde comprou o bilhete.

O homem não sabia se as poucas pessoas que aguardavam a locomotiva estavam melancólicas ou se isso seria fruto de sua própria consciência, que transformara tudo ao seu redor em uma massa de imagens cinzentas de um mundo que já havia sido alegre e abastado. A única coisa realmente palpável era a névoa que cobria o local, provavelmente fruto do frio que fazia na cidade aquela tarde.

Ouviu o som característico da locomotiva se aproximando até ela preencher os trilhos da plataforma, a grande máquina de aço pintado em vermelho, que invadiu todo o lugar com a densa fumaça que provinha de suas fornalhas. Cessou seu movimento por completo como uma grande criatura que para sua caminhada para descansar. A fumaça se dissipou e revelou as portas abertas do veículo, convidando-o a adentra-las, antes que se fechassem e prosseguisse sua árdua caminhada. Entrou, bem como os outros que a aguardavam.

La dentro, o homem depositou sua pequena bagagem no local apropriado e se acomodou em seu assento, um banco de madeira escura estofada com um delicado mas gasto couro vermelho, típico dos vagões de primeira classe. Apropriadamente, para ele, poucas pessoas tomaram a mesma viajem, de forma que seria mais fácil se perder em seus pesarosos pensamentos, até seu destino.

A locomotiva, com um estridente grito reiniciou seus movimentos, o homem observava as paisagens que passavam pela janela como um livro que, se haviam sido escritos para o deleite e excitação do leitor, agora pareciam páginas do mais obscuro conto de Edgar Alan Poe. O mundo sem Berenice se resumia a um monte de areia cultivável, que sustentava a raça humana para sua simples existência, que agora não passava de nada além do simples acaso.

A tarde tornou-se noite, e as imagens que passavam pela janela da locomotiva foram se tornando, lentamente, apenas a escuridão. Aquela paisagem negra, iluminada apenas pela pouca luz da lua cheia apenas endossava o sentimento daquele que contemplava aquele cenário, que cada vez mais se tornava igual àquilo que se passava em sua alma, a negrura, as trevas. As luzes elétricas das lâmpadas se acenderam em seu vagão.

A última viagemWhere stories live. Discover now