Ponto de partida - Capítulo 1

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Sete anos, uniforme novo, mochila pesada nas costas. Fim do primeiro dia de aula. Mãos dadas com tia Edite, bedel da escola, aguardava ansioso no ponto logo ao lado do portão de saída. Ao longe, vi o ônibus piscar o farol três vezes, abri um sorriso largo. Ele estava chegando. Coletivo estacionado bem à minha frente, portas basculantes abriram-se, uma para cada lado, acionadas por válvulas pneumáticas. Nome difícil, aprendi logo. Som engraçado de ar escapando, pareciam suspirar cansadas.

Subi os degraus, entreguei a mochila ao motorista, ganhei abraço dele e afago no cocuruto: "Mala pesada, carregando pedra?". Seu Álvaro, meu pai. Alguns passos no corredor, cumprimentei Isaías, o cobrador: "Oi, tio!". Mãos fechadas encontraram-se levemente no ar, nosso cumprimento criado um ano antes: "Fala, moleque!". Voltei, parei ao lado do condutor, contei novidades, aulas que tive, nome da professora, havia feito alguns amigos. Ele quis saber montes de coisas. Enquanto conversávamos, checou a hora no estimado relógio prateado – presente recebido do Beto, um dos passageiros –, ligou a seta, olhou no espelho lateral, engatou a marcha. Tirou o pé do freio, pressionou o acelerador. Volante girado para a esquerda, partimos. Eu, curioso, e meio sem jeito, tentei imitar seus movimentos. Depois, cansado, sentei no banco logo atrás dele, à janela. E ali fiquei, pela primeira vez, até o final do turno.

Passei a infância toda dentro daquele ônibus. Minha mãe, dona Izabel, precisava trabalhar fora para compor a renda e eu, muito novo, não podia ficar sozinho em casa. Meus irmãos, Jorge e Maria Júlia, mais velhos, haviam iniciado suas carreiras durante o dia e estudavam à noite. Não tinha quem pudesse ficar comigo. Então, eu e minha mochila éramos passageiros diários no banco detrás do motorista. Saía da escola, peso nas costas, esperava o ônibus chegar, subia.

Naquele banco, eu brincava, lanchava, dormia, conhecia e conversava com pessoas. Imitava o cobrador, fazia lição, estudava. Muitas redações foram feitas para as aulas de língua portuguesa usando narrativas contadas ou vividas ali. A letra ficava horrível porque chacoalhava demais, cadernos apoiados nas pernas, mas era o meu melhor possível. Época de prova, então, era aprendizado em grupo. Lia em voz alta capítulos de geografia, tentando memorizá-los e, quando menos esperava, estávamos todos confabulando se os Montes Urais ficavam na Europa ou na Ásia. Firmava o compasso com tanta força no caderno, para não perder a ponta do vértice e traçar a bissetriz do ângulo com precisão, que até furava a página. Aquela e mais umas dez.

Dali, observei vidas serem, também, passageiras. Pude compartilhar momentos preciosos com seu Álvaro, passar um tempão com ele, aprender com seus exemplos. Qual criança teve um privilégio desses? Assistir orgulhoso ao trabalho do pai. De camarote. Infância boa, formou meu caráter, moldou a personalidade. Fui testemunha de tantas histórias que, com doze anos, já tinha decidido o que seria quando crescesse. Médico, para cuidar de pessoas. Consegui. Hoje, com quarenta e quatro de idade, casado, dois filhos e dois cachorros, sou responsável pela emergência de famoso hospital de São Paulo. Influência direta dele, seu Álvaro, motorista de ônibus urbano. Dirigir era o que sabia fazer. Mas ia muito além. E vinha. Tinha um gosto danado pela profissão. Era apaixonado por servir às pessoas. No volante daquele coletivo, ensinou-me a conduzir minha vida.

Trinta anos na linha 106-A, saindo de Santana, zona norte da cidade, indo até o Itaim-Bibi, zona sul. O lado bom da rotina imposta pela constante repetição do itinerário, e dos horários fixos de chegada e saída dos pontos finais, era poder conhecer passageiros pelo nome. Sabia onde trabalhavam, quem era casado com quem, quantos filhos tinham. Se gostavam ou não de futebol, para qual time torciam, hobbies. Alegrias, aflições, medos, sonhos e realizações. Detalhes revelados viagem após viagem, em conversas diárias. Um tanto paradoxal chamar de passageiros, os amigos feitos ali para a vida toda.

Na condução do coletivo, não se restringia ao constante ir e vir. Envolvia-se com as histórias das pessoas, perguntava, dava conselhos, opinava. Aprendia muito, ensinava o que sabia. Auxiliava como e quanto podia. Pedia ajuda quando precisava. Cuidava. Acima de tudo, importava-se verdadeiramente com aqueles ao redor. Dizia que a vida se encarregava de mandar de volta tudo aquilo que fazíamos aos outros. Então, queria fazer o bem. E o fez. Muito bem.

Assim como nós, a maioria, naquele ônibus, era de pessoas simples, batalhadoras. Vencedoras mesmo. Tinham dias difíceis, brigados, suados. Exigiam esforço para serem vividos. Um pouco de gentileza tornava tudo mais fácil. Não raro, antes da primeira saída, no terminal da estação do metrô de Santana, lá ia o motorista à padaria e comprava pão de queijo recém-saído do forno. Chegava no ponto, oferecia aos que esperavam em fila. Era sua forma de começar bem o trabalho. A felicidade dos outros o fazia feliz.

Levava flanela para tirar embaçado do para-brisa, garrafinha de água, caixinha com meia dúzia de medicamentos – para dor de cabeça, sal de frutas, para enjoo, curativo, antisséptico –, caso alguém precisasse. O velho radinho de pilha ao lado, como companhia, música na estação preferida. Passava o tempo, distraía. Ou desligado, quando a conversa ficava animada.

Tomava advertência de fiscal porque parava fora do ponto, para pessoas mais idosas descerem ou subirem. Gentileza: "Mais perto das casas delas, ficam confortáveis, andam menos. Olha a dona Naná, por exemplo, coitadinha. Oitenta e quatro anos...", dizia. E ainda descia com guarda-chuva aberto em dia de garoa, para acompanhá-la até a porta e protegê-la: "Seu Agenor vai ali no banco sacar a aposentadoria. Não custa deixá-lo na porta. Um segundo, nem atrapalha nada". O fino do atendimento aos clientes. Mas não tinha jeito. Era o trabalho do fiscal, fazer o quê?

Quando entrava alguém novo, não se acanhava. Cumprimentava, dava boas-vindas, desejava boa viagem. Era inesperado, havia quem estranhasse, ficasse quieto e passasse logo pela catraca. No dia seguinte, o ritual repetia-se. Ainda estranheza? Não duraria. Depois da terceira vez, era o passageiro quem entrava falante, sorrindo: "Bom dia, motorista". E logo ouvia a resposta: "Tudo bem? Aceita pão de queijo?". Pronto, já era parte daquela família. Nossa família coletiva. Eu me divertia.

Uma linha, tantas histórias. Contadas ali, à nossa frente, a cada nova partida. Fui crescendo a cada viagem, a cada trecho. Anos foram deixados para trás, tais como os pontos de parada da nossa vida. Com começos, meios e alguns fins. Como se fossem livros, novelas. Página após página, um capítulo por dia. Sem roteiros definidos ou possibilidade de reescrever, editar, mudar o final. Seguiam por caminhos previstos ou inesperados, improvisados, até seus pontos finais. Vida real, nua e crua. Tantas vezes doídas, muitas comemoradas. Histórias construídas, sonhos pouco a pouco realizados, dúvidas frequentemente transformadas em certezas, ganhos e perdas, choros e risos. Muitos risos.

Hoje, vinte e sete anos depois da última vez que andei no ônibus do meu pai, estou de volta ao banco detrás do motorista, linha 106-A, Santana-Itaim. Uma descoberta simples, carregada de emoção, fez-me querer voltar e recordar detalhes do caminho. Reviver fantasias criadas pela imaginação rica de criança, relembrar personagens conhecidos e momentos mágicos vividos naquela época. Foram muitos.

Caderno apoiado no colo, caneta azul na mão, foram essas as anotações que fiz. 

Entre Pontos | DegustaçãoWhere stories live. Discover now