Você já voou?
Quando a cama cede e você cai, então dorme no vazio da existência. Por que ainda é existir, porém é um manter - se miserável, sem nada para apoiar. Você está suspenso no vazio. Então você voa. Abre as asas da solidão e canta algo triste, quase imperceptível. Não há gaiolas, mas não há começos e fins. Não há prisão, mas sim uma liberdade cruel, pois não é compartilhada. Quem te ensina a pousar na escuridão? Qual é o limite que se voa antes de cair ? Não se sabe; pois não há tempo, só há escuridão. Há cansaço, mas não há recompensa; mais uma vez, só dor. É impossível ver o tamanho das asas ou sua cor. Você não se vê, só se ouve, mas não gostaria. É agonizante.
Mas ao juntar a asas, veste sua intensidade. Sente sua presença. É assim tão quente e aconchegante fazer-se de abrigo. O canto como se possível diminui, até cessar. Será que finalmente tudo está bem? Não. Parece que nunca ficará, nada será concreto.
Há um fim, mesmo não sendo aquele que se espera. Você chegou, caiu.
O que encontra? Água, você ainda não vê, mas lhe invade o corpo, esfria e te carrega de desesperança. Está cada vez mais fundo, mais fundo, mais fundo. Submerso na dor de existir; se afogando nas razões exaltadas. Antes de perder os sentidos e ficar para sempre afundando, grita - se o último adeus.
Não é um canto, está mais para um chiado pavoroso que necessita de toda a mandíbula aberta. Você ouve, sente em cada pedaço do corpo. Vai engolindo toda água. Enchendo -se. Não há mais dor, só resta-lhe medo de transbordar caos. Mas consegue, nada mais lhe molha. Você sente pela primeira vez pisar em algo concreto. A vontade de dançar é grande, devem ser os pés felizes por finalmente serem úteis. Correr é obrigação, instinto. Ainda não há nada para ver e não se possuí voz , é uma fuga.
Está suando, ofegante, ansiando por algo. Quando ele vem. Não é bem o que se espera, você esbarrou consigo mesmo no chão, o corpo jogado, imóvel, como em um sono profundo. Consegue ver - se claramente, até mesmo os detalhes que fingia não notar. Desvia o olhar. Isso é torturante, apavorante o modo de encarar-se tão de perto sem nenhuma admiração, por isso se evita. E quando os olhos pousam novamente, seu corpo não é mais seu corpo, mas um contorno grotesco feito de minhocas. Seu estômago ronca dolorosamente. Se ajoelha perante a refeição. Devora a si mesmo sem desperdiçar. Se sente saciado e volta a jornada.
Correr sem encontrar lugar, buscar sem nunca achar respostas parece seu destino eterno. Perde o propósito de se ter pés, ir atrás. Você para, senta e espera. Agora literalmente você entende o nada. Não emite sons, não bate as asas, não corre ou pensa. Entende o valor da desistência. Tornou-se então parte da escuridão, parte do não ser. Não é triste ou deprimente, pois não é nada.
Vai se passando o "não tempo" e uma dor surge novamente no estômago. Não está roncando, mas voltando - se contra si, como um castigo pavoroso por um pecado que não cometeu. Sente como se quisesse vomitar sua presença ali. O corpo curva para frente, o estômago empurra mais e mais. Do que é um bico ao invés de boca, apenas sai água. Nada muito apocalíptico, apenas uma poça se forma ao lado. Aproxima - se dela para ver se reflete. Mas o quê exatamente? Não há nada ali fora, você olha a sua volta; mas mesmo assim enxerga algo. É seu quarto como sempre foi, na cama, avista a você mesmo deitado, dormindo com um sorriso nos lábios. Você se chama como um apelo e acorda. Senta na cama e coça os olhos. Depois olha pra cima, em direção a poça, em direção a você. Mesmo na escuridão, se enxergam e se reconhecem. A pessoa sorri. Ela sempre sorri.
- Olá. - A pessoa acena da cama. - Você grasna em responta.
- Por que não está voando? - Grasna mais uma vez.
- Entendo, você procura a saída. Se eu te disser, você me deixa voltar a dormir? - Você acena que sim com a cabeça.
- A saída é continuar.
- Continuar? - Surpreende - se por conseguir responder dessa vez com palavras. A pessoa de dentro do quarto suspira. - Pra onde? Você consegue falar normalmente agora, como mágica.
- Em frente. Não é isso que dizem?
- Isto não está ajudando.
- É claro que está, mas você não consegue ver ainda.
- Você faz alguma ideia de como eu faço pra ver, humano?
- Faço, mas você precisa aprender sozinho.
- Se somos um, isso não faz sentido. Como você pode saber algo que eu não sei? - A pessoa sorri gentilmente.
- Você sabe voar, não é? Eu não sei voar. Agora posso voltar a dormir? - Mesmo sem ouvir a resposta, a pessoa se vira, cobre - se e fecha os olhos.
- Espera! - Você grita, mas ela continua deitada imóvel. Quando tentou chamar mais uma vez, grasnou ao invés de dizer. E grasnou mais uma e mais outra de forma inútil. Então deitou - se no chão.
Uma tristeza infesta o peito que agora doí. Depois de tudo, pensa que esta acostumado com a dor. Mas aquelas de dentro eram sempre mais cruéis, pois encontravam uma nova maneira dilacerante de machucar. Porém sempre surpreendia na maneira de se mostrar para fora, fisicamente. Algo quente lhe escorria do rosto e tocou - lhe o que voltará a ser sua boca; era doce, cruelmente real. Percebeu que estava chorando conforto. E isso mantinha seu rosto aquecido.
Levantou - se, ainda chorando. Abriu as asas, deu impulso para cima e começou a batê - las. Talvez não tivesse ideia do que seria seguir em frente, mas pela primeira vez, não teve medo de voar.