Quando pisei no quarto do Picerni, que ficava na casa da mãe dele, meu cérebro foi lançado num estado de assombro e repulsa, o tipo de reação que você sente quando entra num daqueles trenzinhos decrépitos de parque de diversões. Igual muitos jovens adultos da minha geração, o cérebro do Picerni, diferente do meu, tinha uma relação peculiar com a memorabilia da sua infância. Dentro da sua mente condicionada, o Picerni achava que era legal colecionar o lixo da cultura pop.
Cada centímetro do quarto estava cheio de bonequinhos, pôsteres, estátuas, carrinhos e qualquer merda que tivesse alguma conexão com filmes, vídeo games, desenhos e seriados dos bons tempos do entretenimento de massa dos anos 80 e 90. Sempre achei estranha essa combinação de nostalgia com a força do marketing. A minha geração cresceu engolindo propaganda maliciosa de tudo quanto era tipo de produto feito pra criança, e agora nosso cérebro parece escravo do infantilismo daquela época. Você não acha esquisito os adultos de hoje se cercarem de brinquedos e de brincadeiras?
Quanto a mim, já que minha infância foi um desastre, qualquer coisa que me lembre dos anos sob a influência da babá eletrônica me faz querer fugir pra outro planeta onde não exista quadrinhos com super-heróis coloridos e vilões malvados, nem empresas dispostas a explorar o cerebrozinho das crianças e dos meninos crescidos.
O que nos leva de volta ao Picerni, que foi o cara escolhido pra trabalhar comigo no meu próximo projeto. Que projeto? Bom, aqui vai a revelação da minha vida lastimável: eu trabalho com marketing. A exata coisa que mais odeio no mundo. Não é engraçado? Seja destino ou maldição, é nessa área que fui cair, e escapar daquilo que lhe foi reservado na vida não é fácil, como bem sabem as almas daqueles que morreram nas trincheiras do mundo.
O Picerni era um designer gráfico, ou seja, passava a vida reproduzindo no computador tudo aquilo que absorveu durante a infância: cores berrantes, formas cartunescas, dégradés Rede Globo e impacto Hollywood. Nossa tarefa era criar um site pra uma ONG que trabalhava com coleta seletiva; ele cuidaria da arte e eu do resto. Nada muito complexo, ou pelo menos era o que eu esperava.
Acontece que as ideias dele para o projeto não eram nada realistas: ele começou a falar empolgado sobre criar uma história em quadrinhos onde “a mensagem seria representada na ação dos personagens”. Eu odiei cada palavra daquela frase. O que ele não entendia era que não estávamos trabalhando num maldito desenho animado das manhãs de sábado – nosso trabalho era só fazer um site chato sobre um assunto modorrento e coletar nosso pagamento miserável.
Enfim, depois de esmagar os sonhos do Picerni, passamos o resto da tarde preparando o tal site em meio à desilusão que sentíamos com a merda das nossas vidas. Afora uma ou duas interrupções da mãe dele – que veio oferecer suco e bolinhos para os trintões trabalhando na casa dela como se fosse um projeto do colégio – tudo saiu relativamente bem, e quando terminamos, o Picerni insistiu em me mostrar as novas aquisições do seu santuário de bugigangas. Por me sentir culpado por ter sido duro com ele antes, eu respirei fundo, fingi um sorriso e fiquei lá ouvindo detalhes obsessivos sobre heróis japoneses e quadrinhos americanos.
Foi no meio dessa exposição, quando eu estava segurando um dos bonequinhos dos Cavaleiros do Zodíaco, que tudo mudou. Do corredor, vieram duas vozes femininas com o timbre agudo e o entusiasmo da adolescência. Elas fizeram uma rápida parada no quarto do Picerni – descobri que uma era sua irmã, um tanto fora de peso, como era traço da família, e a outra era amiga dela, uma garota magra de olhos amendoados e cabelo preto escorrido.
A irmã, a Talita, deu um rápido recado da mãe sobre o jantar, e a amiga, até então sem nome, destruiu meu cérebro com um olhar de quem tem curiosidade e vive debaixo de um oceano profundo de malícia dormente.