Sorvete amargo

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Hoje era outro dia quente. O sábado havia amanhecido ensolarado e sem nuvens, mas ao contrario dos outros dias eu havia acordado ansioso. Experimentara diferentes roupas frescas sem saber ao certo com qual eu me sentia menos detestável, então optei por uma blusa branca de mangas e bermuda jeans. Jungguk disse que às nove passaria para me buscar de bicicleta. Ele queria me levar para a sorveteria de seus pais, a Jeon's, e confesso que de primeira eu não senti nem um pouco de vontade de ir. Não gostava de lugares públicos. Muito menos de lugares públicos em dias quentes, mas Jungguk tinha o estranho poder de fazer eu me sentir confortável em qualquer ambiente. Ele me distraía e me fazia bem. Lá tinha ar-condicionado e sorvete, já era um ponto positivo também.

Recebi sua mensagem quando faltavam dez minutos para nove horas, avisando que já estava saindo de casa. Desci para esperar no quintal. Minhas pernas estavam inquietas assim como o meu coração. Era sempre assim minutos antes de vê-lo. Pude avistá-lo descer a rua em alta velocidade, com os cabelos voando por causa do vento. Ele não aprendia mesmo... pedalava com força e sorria como se aquilo fosse a coisa mais radical que pudesse fazer àquela altura. E era. Não pude conter o meu sorriso. Levantei do degrau que levava à minha porta e fui para a calçada. Ele freou bruscamente na minha frente e limpou um pouco do suor de sua testa.

"Caralho! Que calor. Sobe aí."

Eu apenas ri do seu comentário. Me posicionei atrás de si, sentando desconfortavelmente e segurando em seus ombros.

"Posso ir?"

"Pode, gguk"

Então ele começou a pedalar mais devagar pois sabia que eu brigaria com ele caso ele atentasse contra a nossa vida. Enquanto fazíamos o percurso, ele conversava comigo.

"Mimi" Eu amava quando ele me chamava de Mimi

"Oi"

"O que acha de passarmos o dia lá? O segundo andar ainda está em reforma, mas tem uma parte que já está pronta. Podemos ficar lá lendo, conversando... trocando bitocas"

Eu ri e o estapeei de leve.

"Por mim tudo bem, eu não tenho nada para fazer no dia mesmo"

Então apenas sorrimos e continuamos o nosso caminho até a sorveteria.

Sabe, qualquer lugar ficava agradável com Jungguk. Nesse dia tomamos todos os tipos de sorvete de graça até ficarmos enjoados. Jogamos free fire até o celular quase pifar e, na hora de fechar, a senhora Jeon pediu ajuda para limpar a loja. Descemos e fomos para a dispensa. Comecei a recolher os produtos de limpeza, mas Jungguk nos trancou lá.

"O que está fazendo?" Eu perguntei sabendo exatamente o que ele estava fazendo.

"Eu gosto de aventuras de filmes adolescentes. O cheiro daqui é horrível."

"Eu gostaria que essas coisas limpassem meu passado da mesma forma que limpam o sorvete endurecido no chão."

Então ficamos em silêncio. Percebi de Jungguk me encarava  e que eu havia estragado tudo. Ele não sabia nada sobre mim. Eu só soltava essas paranoias de vez em quando e o fazia ficar me encarando com uma expressão de dúvida. Suspirei. Eu sempre estragava tudo, sim, e estava acostumado com isso, então apenas me encostei no armário e me encolhi encarando o chão, observando seus pés se aproximarem de mim devagar. Eu nem ao menos tinha coragem de olhá-lo nos olhos. Ele me chamou quatro vezes e eu o ignorei, então ele começou a falar mesmo que eu nem ao menos prestasse atenção.

Eu lembro de suas palavras vagamente. Ele disse muita coisa. Eu só me concentrava em chorar copiosamente como uma criança mimada, mas algo ficou gravado em mim. Ele me disse que eu nunca poderia mudar meu passado, mas que poderia ter um presente mais confortável e que tinha o poder de mudar o futuro. Só que eu não sabia e nem tinha ideia de como fazer isso. Parecia tão fácil para o Jungguk falar isso que na hora, para mim, pareceu muito fácil de fazer também. Então eu o beijei e o abracei. Ficamos daquele jeito até ouvir a Sra. Jeon chamar por nós. Quase fomos pegos.

Quando eu cheguei em casa, há mais ou menos uma hora, minha mãe estava sentada no chão da cozinha segurando um papel com força. Ela chorava e gritava com raiva e eu pensei que ela pararia quando me visse, mas ela não parou. Do contrário, ela apenas continuou como se eu não estivesse ali, então eu comecei a chorar também porque aquilo me machucou de forma desestruturantes. Tirei o papel da mão dela e a abracei. Dei água, um calmante e preparei um chá. Pedi delicadamente para que ela se levantasse e fosse até o sofá comigo. Ela não protestou e me acompanhou. Coloquei omma deitada, mas ela continuou chorando. Respirei fundo e já não podia mais conter as lágrimas por mais que eu tentasse. Decidi verificar o motivo da dor de minha mãe e entendi tudo: meu pai, ou ex-pai, havia expedido uma ordem judicial para nos expulsar de casa. Ele queria a nossa casa. A casa que não mais dele. A casa que ele deixou para trás. Ele nos queria na rua depois de ir viver luxuosamente com sua outra família. Ele nos queria fora, depois de ter ficado fora por anos. Aquilo era demais para mim.

Amassei o papel, coloquei dentro da pia e coloquei fogo nele. Eu não pensei nas consequências que isso traria, mas ninguém iria tirar a nossa casa. Meu pai já havia se retirado da nossa vida, como ele era capaz de querer retirar o nosso lar? Como ele queria destruir a minha mãe e a mim dessa forma? Por que ele estava fazendo tudo aquilo? Eu estava com vergonha. Pra quem eu contaria que estava sendo despejado pela justiça? Os vizinhos... eu não gostava nem de pensar. Minha mãe dormiu sem tomar o chá e o sorvete ficou amargo no meu estômago. 

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