Ela era a destruição. Se lembrou, de maneira dolorosa, quando o banco se espatifou abaixo de si. Ser gorda tinha disso. Ela tinha que pensar muito bem antes de investir o seu suado dinheiro mortal em qualquer um desses banquinhos fajutos produzidos pelas fábricas multimilionárias exploradoras de trabalho escravo. Um trovão ressoou alto, sacudindo todo o seu minúsculo apartamento, e Calina tremeu, como que num gesto automático. Sabia, porém, que aquilo nada significava além de um lembrete de que a tempestade não iria cessar. Havia sido assim nos últimos três meses.
Cali sacudiu a cabeça e se levantou. Bateu os olhos no relógio, apenas para confirmar, mais uma vez, que ainda tinha duas horas antes do início do seu turno no bar. Por fim, enfiou a carteira e o celular no bolso da calça preta, calçou os tênis de couro que aguentariam mais um dia de chuva e seguiu andando pela rua por duas quadras até chegar ao seu local de trabalho.
— Tá adiantada de novo, Calina! - Roberto, o DJ, a cumprimentou na entrada. Ela encarou a calça legging verde cintilante dele e riu.
— Porra, viado, é Halloween! Lembra?
Roberto deu de ombros.
— Estou de Iara - disse, passando a mão pela peruca loira, como se fosse óbvio.
Calina desistiu e seguiu em silêncio para trás da bancada em que gostava de se esconder a noite toda.
Demorou mais que o normal para que a casa enchesse, naquela noite. Talvez porque a tempestade estivesse piorando, nos últimos dias. Isso costumava assustar as pessoas comuns, mas não Calina. Ela não era uma pessoa comum e não havia nenhum tipo de tempestade que fosse impedí-la de seguir normalmente com a sua vida.
Calina gostava de observar como eles dançavam. Seus corpos se mexiam freneticamente de encontro a outros, ávidos por um tipo de química que devia ser o mais perto de magia e de sobrenatural que eles jamais chegariam. Como se aquilo fosse algo a se querer mais do que tudo. Como se nada mais importasse do que aqueles pequenos minutos em que substâncias diversas, naturais ou não, ferviam em seus sangues e os levavam para uma dimensão menos mortal. Foi quando ela a viu.
Seus olhos brilhavam mais que os outros e, por um momento, Cali quase achou que elas fossem semelhantes. Mas não, não podia ser. Não tinha como ser. Seu corpo, porém, conforme se mexia, parecia exalar uma espécie de feitiço. Ou talvez fossem os seus olhos. Não importava, Calina estava presa. Pessoas gritavam com ela, do outro lado do bar, tentando chamar sua atenção. Estalavam os dedos, batiam na bancada, mas nada adiantava. Calina tentou piscar, assustada, e finalmente conseguiu se mexer. Procurou, no mesmo instante, como que viciada, por aquela que havia lhe enfeitiçado, mas ela não estava mais a sua vista. Havia sido algum tipo de alucinação? Uma moça irritada bateu com força, de novo, na bancada e Calina foi atendê-la.
— Me vê uma cerveja, por favor!
— Eu pego! - Calina gritou para o outro barman com quem dividia o serviço, já que estava mais perto da geladeira com as garrafas. Terminou a caipirinha de outro cliente, pegou a cerveja e quase derrubou tudo no chão quando se virou para entregá-las e se deparou de novo com ela.
Calina conseguiu entregar a caipirinha com alguma dificuldade e estendeu a mão com a cerveja, mas não a soltou. A mulher sorriu e, de novo, Cali sentiu que seu feitiço era poderoso e antigo. Como podia? Calina também sorriu. Do jeito que sabia que as mortais costumavam interpretar como um flerte.
— Posso saber qual o seu nome?
A mulher riu, mas não com maldade. Riu de maneira tímida. Se ela não fosse mesmo mortal, com certeza estava naquilo há mais tempo que Calina, porque era muito boa.
— Maia.
Cali estremeceu.
— ώ μου θεά, της ινδουϊστικής κάλι ειμί. - Arriscou, torcendo para que seu Grego não tivesse tão enferrujado quanto todo o resto de seu antigo mundo.
Maia fez uma cara engraçada e confusa.
— Isso é algum tipo de cantada creepy de Halloween ou o que? Porque, vou te dizer, me assustou...
Calina deixou a cabeça pender para o lado e sorriu, de novo. Ela tinha acabado de tentar falar Grego antigo com uma mortal? O que estava acontecendo?
As duas conversaram mais um pouco. Felizmente, Maia não parecia ter se assustado o suficiente para se afastar e Calina a convenceu de irem para um outro bar menos agitado, quando seu turno acabasse - o que seria em breve, já que naquele dia ela estava apenas cobrindo algumas horas para uma outra menina que chegaria em breve.
Maia era divertida, tímida e inteligente de um jeito hipnotizante. Seus olhos, de perto, pareciam bastante normais, mas Cali ainda suspeitava que algo estranho estivesse acontecendo ali. Poderia a deusa da primavera ter ido parar no mundo mortal e se esquecido totalmente de quem era? Entre uma cerveja e um café, em pé, paradas debaixo do toldo de um outro bar lotado, elas se beijaram. E seu beijo, Cali, que já tinha beijado outras mortais, podia garantir: não era nada mortal.
Calina roçou os lábios úmidos pelo pescoço de Maia e a trouxe mais para perto. Elas tinham a mesma altura, o que facilitava bastante as coisas quando se abraçavam, e Maia escorregou a coxa por entre as pernas de Calina, que apertou sua cintura e teve que puxar o ar com força, apenas para se deliciar com o perfume - é claro, de rosas - que Maia exalava. E foi assim, então, que a destruição se apaixonou pela primavera.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Destruição ⚢
Short StoryEla era a destruição, mas aquele não era o seu mundo. Havia abdicado de tudo o que era para ser apenas Calina, que tinha um apartamento minúsculo no centro da cidade e trabalhava no bar de uma badalada festa LGBTQ+ ali por perto. Ainda assim, poderi...