"Por que, Roxo?" Não pude deixar de perguntá-lo. "Por que eu falhei?"
Meu amigo não teve palavras para me responder. Era estranha, a sensação de ser um experimento falho. Imperfeito. E eu até conseguia entender o motivo dele não saber me responder - afinal, ele era novo. Diferente de mim, e do Vermelho, ele não estava acostumado a lidar com essa falha.
"Eu vou ser substituído; Quatro milênios inteiros de serviços perfeitos, todos jogados fora por causa da minha maldita estupidez." Afirmei com tristeza.
O meu trabalho era o mais simples de todos: tudo que eu precisava fazer era inventar e construir coisas que a Deusa Azul pedia. Não era nada demais comparado ao que o Roxo ou o Vermelho fazem. E mesmo assim, eu falhei.
"Talvez você não seja substituído." Roxo disse, colocando a mão no meu ombro. "Talvez ela chegue a te dar outra chance."
"Ha," Eu tive que rir num tom seco. "Eu conheço a Azul há mais 4000 anos, Roxo. E ela nunca mudou. Ela vai me substituir, confie em mim."
Então me levantei, e fui arrumar minhas coisas. Quando eu for substituído, o próximo Laranja não deverá se preocupar em arrumar minha bagunça. Eu peguei uma torre de livros que estavam oegando poeira em cima da mesa, e tentei ir até a estante de livros. Mas antes que eu pudesse fazer mais alguma coisa, uma teia, branca e pegajosa, se grudou na minha mão esquerda.
"Orange~" Uma voz feminina familiar me chamou, vinda do teto. "O que está fazendo?"
A Aranha. Ela era uma das formas físicas da Azul. Mas ela decidiu separar a Aranha do seu corpo principal, e fez dela minha "segurança." Era de se esperar que certos humanos iriam tentar me usar para os seus próprios interesses, e como eu não tinha nenhum método de defesa, a Aranha não sai mais do meu lado.
"Arrumando esse lugar." Eu disse, não me importando muito. Mas então eu percebi, que agora a Aranha terá que viver com outro Laranja. Eu suspirei.
"Mas você não arruma nada há décadas. Há algum motivo especial?" Ela perguntou, curiosa como sempre.
Olhei pra ela com tristeza nos olhos. Deixei a pilha de livros na estante e me virei pra ela. "Aranha.." Ela desceu do teto. Ela era muito maior do que eu, devia ter uns 7 metros e meio de altura. Ela abaixou a cabeça e eu toquei uma das bochechas dela. "Eu... Eu falhei. Falhei com a Azul. Daqui a algumas horas, ela vai nos chamar em sua presença e vai me substituir."
Seus 5 olhos se arregalaram. "O que...?" Ela perguntou em choque.
"Eu vou sentir sua falta, Aranha." Senti meus olhos marejarem, e os dela também. "Sinto muito."
Ela olhou pra mim como se eu tivesse matado alguém. Daí ela me abraçou, sendo cuidadosa o suficiente para controlar sua força - um abraço dela pode quebrar uma pessoa pela metade -, e eu a abracei de volta.
"Mas pode não acontecer... Não é?" Ela perguntou, tentando acender uma luz, mesmo que pequena, de esperança. Mas eu tive que negar. Ela me soltou do abraço e enxugou algumas lágrimas teimosas que escaparam do seu segundo par de olhos. "Então... Você vai precisar de ajuda pra arrumar isso." Ela disse.
Eu concordei com a cabeça.
Eu e a Aranha começamos a arrumar a sala, enquanto o Roxo ainda estava sentado onde eu o havia deixado. Não quero incomodá-lo, já que o Roxo já tem problemas demais.
Eu vi, pelo canto do olho, quando ele enxugou uma lágrima dos olhos. Olhei pra ele com tristeza. Eu deveria parar de me sentir assim, só vou fazer ele se sentir pior. Então sacudi a cabeça e voltei ao trabalho.
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Quando finalmente a sala já estava limpa, eu abracei a Aranha uma última vez. "Adeus, minha amiga. Continue com seu bom trabalho." Eu disse a ela."Vou sentir sua falta." Ela disse, me soltando do abraço e não falando nenhuma palavra a mais.
Então me virei para o Roxo. Ele ainda estava do mesmo jeito. Andei até ele e me sentei ao seu lado.
"Que curioso." Eu disse, sem olhar pra ele, e sem ele olhar pra mim, "Você já é o vigésimo sétimo Roxo que eu já conheci. Foram só algumas centenas de anos que nós passamos juntos. Mas eu ainda não consegui parar de me sentir triste, por você. Eu vou deixar você."
Ele olhou pra mim. "E eu não devia nem estar aqui. Mas eu não queria ficar tão longe de você sendo que essa pode ser a última vez que eu vou ter essa chance."
Isso não era totalmente verdade. Ele iria ter outro Laranja. Alguém com o propósito de ser igual a mim - é claro, sem falhar -, alguém com o destino de ser eu.
Eu não tinha mais nada pra dizer. Eu não era acostumado com despedidas. Nunca fui, apesar de ter participado de todas as substituições dos Roxos que eu já conheci. Então um som conhecido ressoou de fora do meu laboratório.
"É ela." Eu disse. "Chegou a hora." Então eu levantei. "Adeus, Aranha. Adeus, Roxo."
Nenhum dos dois disse nada em resposta. Roxo me seguiu até a sala onde Azul estava. Vermelho esperava por nós lá dentro, em frente a Azul e fazendo sua reverência - Vermelho segurava uma espada, sua guarda escondida entre as duas mãos em frente ao seu peito e a ponta da lâmina vermelha tocando o chão -, enquanto eu e Roxo fizemos o mesmo.
Fizemos uma linha reta em frente a Azul, com Vermelho ao meu lado em minha direita e Roxo em minha esquerda. Minha reverência é apenas deixar meus braços atrás das costas, enquanto o de Roxo é entrelaçar os dedos das mãos em frente ao seu peito, numa posição semelhante ao que fazemos quando oramos.
"Minhas cores." Azul disse, sentada em seu trono, radiando sua beleza natural.
"Sim, minha Deusa?" Dissemos em uníssono.
"Eu soube que houve uma falha por parte da cor Laranja em sua última tarefa," ela disse, seus olhos azuis quase penetrando a carne de Laranja, "Isso é verdade?"
"Sim, minha Deusa." Dissemos juntos, sem hesitar.
"Laranja, explique-se." Ela ordenou.
Dei um passo à frente e comecei a explicar o acontecido. As outras cores não reagiram. Apenas me ouviram falar.
"Isso é tudo, minha Deusa." Disse, terminando.
Ela olhou para mim com uma expressão ilegível. Então ela suspirou. "É uma pena." Ela disse. "Quatro mil anos, Laranja, e você nunca falhou uma única vez."
Ninguém ousou responder. Ela colocou a mão em seu queixo. "Eu deveria substituir você, Laranja. Deveria mesmo. Mas seria uma decisão idiota fazer isso com você. Você é quase perfeito, minha Cor. Uma única falha, depois de 9 milhões de invenções bem sucedidas, não são o suficiente para que você seja substituído." Ela disse. "Mas não pense que irá sair impune. De hoje em diante, terá apenas metade do tempo para completar todos os meus pedidos."
"Sim, minha Deusa." Eu disse, desta vez sozinho.
"Agora vão. Eu quero apenas Roxo aqui comigo."
"Sim, minha Deusa." Eu e Vermelho dissemos juntos, logo saindo da sala.
Vermelho não dirigiu uma sequer palavra a mim. Eu fiz o mesmo.
Ambos fomos para nossos respectivos quartos (o meu era uma parte do laboratório), mas eu não pude tirar as palavras dela da cabeça.
Quase perfeito, foram as palavras dela.
Imperfeito, foi o que ela quis dizer.
Mas ela me manteve mesmo assim. Ela disse seus motivos, mas mesmo assim, eu não pude evitar de me perguntar, por quê?
Será ela uma Deusa misericordiosa? Ou serão apenas seus próprios desejos egoístas?
Qualquer que fosse a resposta, eu não me importava mais. Já passou. Ela me perdoou, e agora tudo voltará ao normal (claro, com algumas pequenas mudanças).
Eu sou só uma Cor.
Não temho motivo para questionar meu propósito mais do que o já fiz.
Suspirei brevemente antes de entrar em meu quarto.
Eu sou só um Laranja.
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Laranja
Mystery / ThrillerEm um império onde tudo que importa é a perfeição, Laranja viu uma falha. Mas, diferente de todas as outras imperfeições encontradas por ele nos últimos 4 milênios, agora a falha era ele mesmo. Nunca em sua vida ele havia falhado com sua Deusa. Agor...