Æsthetics

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Trinta e cinco riscos feitos a pedra na parede. Tenho a sorte de ao menos ter este painel enorme para preencher com alguma criação, ainda que sejam riscos de envergonhar até mesmo os pintores rupestres da pré-história. Afinal, todo o resto é de um mau-gosto acachapante: uma cama de cimento com um colchão fino toscamente encapuzado por um lençol amarelado e sem travesseiro, um vaso sanitário sem tampa ou divisória para preservar os pudores, paredes cinzentas em cimento cru ladeando três do lados, uma lâmpada fluorescente pendente de uma corrente num altíssimo e vertiginoso pé-direito e as grades à frente. Ao menos tiveram a decência de me colocar longe de quaisquer brutos, graças ao meu diploma de curso superior.

Estar preso, mais ainda do ponto de vista da Beleza do que do ponto prático, é desolador. O aluno da Turma 3, meu discípulo, mas que eu sequer sabia da existência até poucas semanas atrás, não deve estar em uma posição muito melhor. Aliás, é fácil inferir que seja muito pior: por ser um estudante apenas, não tem nem mesmo a prerrogativa de estar sozinho em uma cela. Talvez devesse ser o contrário, já que ele teve a coragem de levar a cabo o que eu nunca tive capacidade de fazer além das minhas fantasias escritas, mas que sempre desejei com mais ardor do que qualquer outro ser humano. É, é verdade... ele deveria estar sozinho para revisitar mentalmente cada uma das cenas que vivenciou e eu em uma cela qualquer, jogado aos leões. Ao menos ele conheceu o que eu sempre quis conhecer – e me mostrou, mesmo que de longe. A este ato serei eternamente grato, mesmo que preso e publicamente condenado. A liberdade não parece um preço tão caro a se pagar por um momento tão precioso.

Minhas aulas de Estética na faculdade só produziam dois efeitos: ou eram sumariamente ignoradas, ou eram vistas como os inúteis esforços de gente objetivista em pleno Século XXI. Em um mundo em que tudo se relativiza, até algo poderoso e que deveria ser absoluto como a Beleza, não é de se espantar que eu não esteja no clubinho dos professores mais populares. A maioria simplesmente passa pela minha disciplina embalado pelo desinteresse e por altas quantidades de maconha, que parece ser tudo o que os estudantes de hoje sabem fazer. São desinteressados e maconheiros. Não conseguem sequer reconhecer a importância do cabelo penteado e da barba bem aparada, então não espero que reconheçam a beleza da Vênus de Milo. Ou do binômio de Newton, que seja. "O binômio de Newton é tão belo quanto a Vênus de Milo / O que há é pouca gente para dar por isso", disse Álvaro de Campos. E os jovens se tornaram incapazes de perceber a discrepância visível entre o Belo absoluto de um Caravaggio e o caos inconformista de um Pollock. O que me restava é passar todos na matéria sem me preocupar muito, voltar para casa, bebericar um destilado bem forte e – aí sim – falar com a minha dedicada plateia daquele fórum anônimo.

Eu comecei por acaso e com resignada despreocupação. Naquele dia, tomei meia garrafa de vinho, já que não havia destilados, e a mistura de azia com desinibição me fez digitar longos parágrafos a respeito da decadência da Beleza nos tempos modernos. Desde que Duchamp jocosamente chamou um urinal de arte e as pessoas acreditaram naquilo como algo revolucionário, tudo foi ralo abaixo. Escrevi quase que em transe; não consigo me lembrar de uma linha sequer e, sinceramente, não esperava resposta alguma. Pensei – erroneamente – que do outro lado haveria outra miríade de estudantes desinteressados em assuntos de tão alta estima para mim e que nortearam toda a minha carreira acadêmica. Quando a primeira resposta veio, não antes de algumas horas de espera e da outra metade da garrafa de Tannat uruguayo, respondi imediatamente. A esta se seguiu outra, e outra, e outra. Quando dei por mim, o despertador do celular estava tocando e o dia estava amanhecido. Era hora de ir para a faculdade viver outro infernal período de trabalho. Outro vez de alimentar porcos com pérolas.

Naquele dia eu dei a pior aula da minha vida. Eu estava tão aéreo quanto os estudantes que ainda faziam questão de estar por lá. Pra dizer a verdade, eu estava tão desatento que nem ao menos me lembro se ele estava naquelas aulas. Só fui descobrir que ele era um de meus alunos quando ele mandou a mensagem com o nome completo e eu verifiquei nas listas de presença que eu levava diariamente para casa, num ritual tão inútil quanto a própria docência tinha sido nos últimos anos. A aula foi horrível porque tudo o que eu queria era voltar para casa, beber mas uma taça ou um copo ou uma dose de qualquer bebida que eu tivesse no gabinete e voltar a escrever para a minha plateia pessoal.

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