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  Não tenho boas lembranças daquele dia. Havia toda uma euforia, uma sensação de que todo o sofrimento do mundo, personificado nos vestibulares, havia sido superado, e tudo o que era reservado agora a nós por direito era uma vida de curtição, bebedeira, farra e pegação. Eu não estava acostumado com nada disso.
  A única boa lembrança que tenho foi quando a Rouge, que ainda era Luana, veio até mim e me falou: “Que maneiro o seu cabelo! Adorei!”. Isso soou como um conforto, logo após um trio de veteranos vir até mim e pedir, com uma falsa gentileza encobrindo um certo tom impositivo, que os deixassem pintar meu rosto, meus braços, minha camisa. Deixei, como quem não tem muito escolha. Não satisfeitos, pediram para cortar meu cabelo, de um jeito irado, pra entrar na brincadeira, pra comemorar o momento. Não queria. Disse que não. Eles falaram pra deixar de besteira, que eles fariam um corte legal, juro, e meus pais estariam tão felizes com minha entrada na universidade que nem ligariam, não ficariam bravos. Cedi, finalmente. Não por me sentir convencido pelas palavras deles, mas pela minha dificuldade de manter uma negativa, e por pensar que isso talvez me ajudasse a ter amigos. Ajudou-me com a Rouge, que quando veio até mim estava visivelmente alcoolizada, e não parava de falar sequer um instante. Falou sobre como os pais dela teriam um infarto se vissem o quanto ela havia bebido; que uma veterana mol legal tinha ido falar com ela e acabado de convidar ela pra fazer parte da equipe de atletismo; que essa mesma veterana havia mostrado pra ela diversos boys que faziam parte dessa equipe, incluindo um loiro ma-ra-vi-lho-so que eles chamavam de Pitt. “Deve ser por causa do Brad, né?!” Que fazer esse curso nunca tinha sido uma vontade dela até o dia da inscrição. “Tinha que escolher alguma coisa, né?!” Começava a me contar sobre como ela se perdeu no dia de ir fazer a prova quando “Opa, peraí. Tão me chamando ali. Pera, qual seu nome?” Trocamos telefones e ficamos de combinar de irmos juntos ao treino de atletismo.
  Quando cheguei em casa e minha mãe viu meu cabelo, ela perguntou por que eu tinha feito aquilo, que estava horrível, perguntou se eu já tinha ido me ver no espelho para saber como eu estava horrível, que eu devia raspar isso, mas como quem tava horrível era eu e não ela, ela não estava nem aí, era eu que iria passar vergonha na rua mesmo.
  Meu pai se limitou a me medir e me encarar em silêncio, sem dizer uma única palavra.

  Foi uma surpresa para mim descobrir que o atletismo é um conjunto de modalidades que vão muito além dos cem, duzentos metros e maratona, as únicas que eu pensava que existia. Um grupo de veteranos entusiasmados se encarregaram de explicar a diferença entre todas elas, ou pelo menos só entre aquelas que eles praticavam, pois havia muitas outras, como gostavam de frisar sempre. O grupo era capitaneado por Mika, a tal veterana que havia convidado a Rouge para a modalidade, antes dela me repassar o convite. Mika era uma garota alta, de coxas torneadas sem serem grossas, que expressava um contentamento genuíno ao falar de cada modalidade, orgulhando-se de praticar praticamente todas elas. Só não era muito boa assim no dardo, disse, mas o Pitt iria explicar melhor a modalidade para nós, calouros. “Alá, alá! É ele!” Me cutucou Rouge, quando um loiro, de uns 1,85m, aproximou-se do centro da roda. Havia nele mais do que o simples encantamento que um homem de aparência escandinava produz (que soube depois serem classificados como “padrõezinhos” por aqueles que não se encaixam nesse padrão). A forma segura com que ele conduzia sua fala; o olhar orgulhoso que direcionava para cada membro daquela roda; a sensação de alguém que parecia se colocar acima de todos, para, enfim, conquistá-los com um sorriso largo e convidativo. Depois de alguns minutos, já não prestava mais nenhuma atenção no que ele dizia, sendo conduzido pelo movimento de suas mãos, que realçavam cada fibra de seus largos ombros, sustentados por rígidos tríceps. Minha vista deslizou alguns graus abaixo, e ali permaneci hipnotizado pela saliência dos genitais sufocados pelo short térmico. Ele aparentou notar minha espiada, e me olhou nos olhos durante um; dois. “Gato meu marido, né?!” cochichou Rouge, despertando-me do transe. Fiz pra ela uma careta de “nada mal”. Com excessão de um grupo de amigos virtuais nos quais eu jamais havia visto um sequer pessoalmente, eu não havia confessado minha atração por homens para mais ninguém, mas já devia haver uns bons anos que era impossível para mim disfarçar isso. A Rouge sabia. As pessoas que me chamavam de viadinho nerd no colégio sabiam. Qualquer um que olhasse um pouco mais atentamente para mim saberia também. Meus pais também deviam saber mas, assim como eu, encontravam-se na fase da negação. Porém, lá estava eu, apreensivamente atraído por aquele eslavo portando uma lança colorida, prestes a dar início a sua demonstração, onde ele iria ensinar que primeiro existe uma forma certa a se pegar no dardo; e então deve se pegar distância, e aí avançando, lateralmente, cruzando as pernas, para poder pegar velocidade; o dardo na altura dos olhos; você fixa o pé frontal no chão e então, transferindo todo o peso do corpo, você lança! E a lança rasgou o ar em uma parábola quase perfeita antes de fincar imponente no centro do gramado, sob o olhar abismado dos presentes.

  Talvez a maior vantagem em se ingressar em uma equipe esportiva é poder se considerar parte de um clubinho. Mas isso não significou para mim a conquista de novas amizades. A única coisa que ganhei da fato foi um apelido: Pônei. O apelido era graças ao meu cabelo que, raspado nas laterais e com a franja cobrindo a testa, lembrava a crina de um pônei. Minha mãe dizia, depois que acostumou-se com o corte, que eu estava a cara do Chitãozinho.
  Apelidos parecem ser uma coisa essencial em uma equipe de atletismo, mais essencial até do que o costume de se treinar regularmente. O da Rouge, inclusive, foi por sua semelhança com a japonesinha do Rouge, que já não lembro mais o nome; o do Pitt, como fiquei sabendo mais tarde, era por sua semelhança com Brad Pitt no filme Troia, em que ele interpreta Aquiles, já que usava um cabelo comprido com coque samurai e não tinha barba em seu ano de calouro. O do restante eu nunca me esforcei para saber, na verdade.
Após alguns treinos, eu estava quase me convencendo de que, mesmo com toda aquela diversidade de modalidades que nossos veteranos, empolgados, nos apresentaram, eu não era apto para nenhuma delas. Não era veloz para as provas de sprint. Não tinha pernas longas para as provas de salto. Não tinha a mínima força para as provas de arremesso. Era sedentário demais para as provas de fundo. Mas a simples ideia de desistir do atletismo e ter o Pitt ainda mais distante da materialização das minhas fantasias carnais me deixava aflito. Ele estava a todo instante em meus pensamentos: nos treinos, nos estudos, no trajeto casa-universidade-casa, no banho, na hora de dormir. Parecia não dar a mínima para a inviolabilidade da minha mente, e a invadia sem pudor, com seu dorso nu, se aproximando lento e lascivamente, enquanto dou curtos e vagarosos passos para trás, resistindo à tentação pelo sumo do fruto proibido. Súbito, sinto minhas costas esbarrar contra a parede. Estou sem escapatória. Ele, enfim, me encurrala, pressionando seu corpo rijo contra o meu. “Aprendeu como se pega no dardo direitinho?!” Eu desvio meu olhar para baixo, e vejo um volume protuberante saltando do short térmico.
  “Eu não sei. Posso tentar?!”
  “Pode.”
  Ele coloca as mãos para trás. Deslizo meus dedos pelo seu dorso, que ondulam nos gomos de seu abdômen, até estacionarem naquela massa roliça. Esfrego, aperto e pressiono ela com vontade, com cobiça, com gula.
  “E aí, o que achou do dardo?!”
  “Ele parece ser bem grande...e bem pesado...não sei se aguento.”
  “Aguenta sim.” E Pitt começa a descolar aos poucos o short elástico de sua cintura, abaixando-o devagarinho até que alguém começou a esfregar algo no meu braço, fazendo cócegas. Uma folha?! Ah, a lista de presença…

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⏰ Última atualização: Feb 06, 2019 ⏰

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O Calcanhar de AquilesOnde histórias criam vida. Descubra agora