Harrison e Caller voltaram juntos à biblioteca, para dar continuidade aos interrogatórios. O detetive mais uma vez conferiu a sua lista de nomes, examinando-a atentamente, como se estivesse procurando uma ordem apropriada, mais eficiente.
- Os peixes pequenos nos levam até os peixes grandes. - Harrison fez uma pausa, e com um movimento giratório e engraçado apreciou o aroma do café. - Por favor, Wallace, diga ao senhor Hugo Thompson que quero falar com ele.
- Com prazer, senhor! - disse Wallace imediatamente saindo da biblioteca.
- Foi impressão minha ou você não me pareceu surpreso com a aparição do travesseiro? - questionou Caller, meio inseguro.
- Oh, sim! Na verdade me surpreendi com o fato de ele não ter aparecido antes.
- Não consigo entender.
- Tenho certeza que não, meu caro amigo! - disse Harrison em um tom brincalhão.
- Vejo que dessa vez você chamou um dos filhos, ainda não é cedo? - perguntou Caller.
Harrison sorriu e respondeu:
- Você tem um ótimo raciocínio, legista Caller. Você seria um ótimo detetive se renunciasse de alguns sentimentos humanos. - disse Harrison forçando um tom sinistro na fala.
- Agora estou assustado.
Nesse mesmo momento Hugo Thompson adentrou a biblioteca, era um homem alto, cabelos negros, cara de poucos amigos, ostentava um bigode enorme, muito bem penteado, com sua voz grossa, o eterno solteirão, como era conhecido, cumprimentou os dois homens.
- Boa tarde, senhores. Em quê posso ser útil?
- Em quase tudo, nobre cavalheiro, sente-se, por favor!
No momento em que Hugo sentou-se, Harrison observou cada detalhe dele. Hugo esfregava sem parar o nariz, e tinha uma toalhinha no bolso da frente do terno.
- Está resfriado, senhor? - perguntou Harrison.
- Ah, sim, muito, por sinal. - disse Hugo um pouco surpreso com a observação de Harrison.
- Suponho que seja horrível dormir resfriado, eu mesmo nem consigo.
- É verdade, eu também mal consigo pregar os olhos, esse resfriado já vem me atormentando há algumas semanas.
- Há algumas semanas, interessante. - disse Harrison com um tom insinuante.
- Vamos lá, caro detetive! Onde estão as ferramentas de tortura? Eu esperava alicates e choques elétricos, ou até mesmo algumas táticas dos nazistas! - disse Hugo muito bem humorado.
- Onde fica o seu quarto? - perguntou Harrison.
- Hum, o meu quarto? Isso é mesmo relevante? - Hugo continuou antes de ouvir a resposta. - Vocês detetives são muito metódicos, é petulância da minha parte questionar, aqueles com mentes presas em anseios nunca compreenderão as mentes brilhantes. Enfim, o meu quarto fica ao lado do de Tyler, aqui em baixo.
- Vamos voltar um pouco no tempo, na madrugada em que sua mãe foi assassinada, você viu ou ouviu alguma coisa estranha, alguma movimentação, correria ou algo do tipo?
- O senhor é mesmo admirável! Naquela madrugada, como o senhor mesmo já deduziu, eu mal consegui dormir por conta desse resfriado. - Hugo retirou a toalhinha do bolso propositadamente. - Eu ouvi algumas coisas estranhas e não estranhas também. - disse Hugo muito enigmático, como se sentisse prazer em ver o detetive pensar.
- Comece pelos acontecimentos não estranhos. - disse Harrison com um sorriso.
- Na noite antes daquela madrugada, eu fui para a cama logo depois do jantar, pois não estava me sentindo bem. Eu passei o resto da madrugada quase toda em claro, lendo algumas obras de Shakespeare, e fumando meus charutos cubanos. O meu sobrinho Tyler, não parou quieto naquela madrugada, ele tinha chegado bêbado pela manhã e dormiu o resto do dia. Eu pude perceber que ele entrava e saia do quarto, e vomitou muitas vezes naquela madrugada. - disse Hugo.
- Como você sabe que ele vomitou?
- Eu fui ao banheiro pela manhã, estava infestado de vômito.
- Ele bebe com muita frequência?
- Ah, não! Ele deve estar passando por muitos problemas financeiros, Sebastian encontrou algumas contas pendentes de Tyler, de um grupo de agiotas, a W&W, devem ser perigosos. - Hugo dessa vez estava mais sério do que nunca.
- Eu acho que sei onde o senhor quer chegar. Pode me dizer o horário em que viu ele se levantar? - perguntou Harrison com o seu velho sorriso enigmático.
- Não posso afirmar com exatidão, como eu disse, ele levantou muitas vezes, perambulava para lá e para cá. Mas tenho quase certeza de que foi entre 2 e 4 da manhã. - disse Hugo acendendo o seu cachimbo.
- E os acontecimentos estranhos?
- Bom... - Hugo fez uma pausa. - Mais de uma pessoa perambulou pela casa naquela noite, o que é muito anormal.
- Pode me dizer quem?
- Infelizmente não.
- Mais de uma pessoa... Você tem algum envolvimento nas empresas Thompson? - perguntou Harrison, enquanto anotava algumas informações.
- Nunca tive cabeça para esse tipo de negócio, sou advogado. - respondeu Hugo, com seu charuto, finalmente na boca.
- Nunca teve cabeça, compreendo, negócios de família são realmente complicados, há sempre desentendimentos, são quase fatais às vezes. Você se dá bem com seus irmãos? Como era a sua relação com sua mãe? - perguntou Harrison com um semblante macabro.
- Nunca tive nenhum desentendimento sério com meus irmãos. Eu amava a minha mãe, ela sempre foi ótima. - respondeu Hugo.
- Entendo. Você viaja com muita frequência, deve gastar bastante dinheiro. - disse Harrison aproximando o rosto na mesa.
Hugo soltou uma gargalhada.
- Não acredito, você já estava me investigando? - perguntou Hugo ainda sorrindo.
John Caller estava quieto, não fazia sequer um ruído, prestava atenção em cada palavra, sua presença era quase imperceptível.
- Não, caro amigo. Aliás, seu terno é lindo, é um touretti, foi lançado há 5 meses atrás na Itália, é exclusivo, eles ainda não exportaram. - afirmou Harrison.
- Sim, eu fui para a Itália, exatamente há seis meses. Algum problema com isso? - perguntou Hugo, imperturbável.
- Não só à Itália, o seu relógio é belíssimo. É um Kurtz, lançado recentemente na Suíça. Além de um viajante ativo, vejo que gosta de acessórios caros e exclusivos. - os olhos de Harrison transmitiam o seu desejo furtivo.
- Eu tenho as minhas vaidades. - respondeu Hugo muito calmo.
Harrison levantou-se.
- O senhor me forneceu informações exclusivas, superou minhas expectativas. - Harrison começou a andar pela biblioteca, parou ao lado de Hugo, colocou a mão em seu ombro, e continuou. - Um assassino sempre tenta esconder o seu rastro, mudando o cenário para incriminar uma presa mais fácil com argumentos convincentes, uma mente assassina é sempre manipuladora. - disse Harrison.
Hugo não disse nada, apenas encarou Harrison nos olhos.
- Você foi de grande ajuda, nobre cavalheiro. Mando te chamar se precisar do senhor novamente.
Hugo apenas se levantou e foi em direção à porta, antes dele sair, Harrison disse suas últimas palavras.
- E a propósito, senhor Hugo Thompson, eu não confio nenhum pouco em você.
Hugo parou, parecia querer dizer algo, mas apenas sorriu, por incrível que pareça, o sorriso dele era muito sincero. Enfim, Hugo cruzou a porta e sumiu de vista.
- Você está tramando algo, não é mesmo, Harrison? - disse Caller com voz rouca.
- Eu? Pobre de mim! Quero mais café.
- Não sou tão tolo assim, o senhor é um homem que costuma fazer coisas inimagináveis, nunca me esqueci daquele dia. - disse Caller, apontando para os seus dentes.
- Está se referindo à aquele dia em Manchester? - Harrison teve uma crise de risos, ao ponto de se contorcer na poltrona.
- Não estou entendendo! O que é tão engraçado? - perguntou Caller, muito confuso.
Harrison se controlou, e como se nada tivesse acontecido, voltou a falar.
- Perdão! O senhor não é mesmo, nenhum pouco tolo. - falou com uma ironia muito bem disfarçada. - O "caso dos dentes" foi realmente muito lucrativo.
- Eu ainda não entendo como é possível descobrir a idade de alguém apenas olhando para os dentes, é incrível! - Caller teve um "efeito retardado" - Espere. Lucrativo?
- Esqueça, esqueça. - disse o detetive, enchendo sua xícara de café.
- Tudo bem. Só quero entender essa onda de "não confio em você", me parece uma estratégia. - opinou John Caller.
- Ora, ora. Que belíssima observação! - disse Harrison, realmente surpreso. - Eu preciso conferir uma coisa, me acompanhe, caro amigo. - Harrison colocou seu sobretudo, penteou o bigode com os dedos e saiu da biblioteca acompanhado de Caller.
Os dois foram até o escritório de Sebastian, a porta estava um pouco aberta, Harrison deu um olhar desconfiado para Caller e entrou no cômodo sem bater na porta, encontrou Sebastian ajoelhado, mexendo em um cofre aberto, que ficava atrás de uma escrivaninha. Sebastian se assustou ao ver Harrison.
- Por Deus, onde estão os seus modos? - Sebastian fechou rapidamente o cofre e colocou a escrivaninha de volta no lugar. - Se não sabe, se bate na porta antes de entrar. Posso ajudá-lo?
Harrison ficou poucos segundos calado antes de responder, parecia ter conseguido ver o que tinha no cofre. Harrison fitou Sebastian, usou a sua aguçada observação e viu que os traços do rosto do homem à sua frente já não eram os mesmos, alguma coisa aconteceu, alguma coisa tinha mudado.
Enfim Harrison quebrou o silêncio.
- Ah, bom, temos que ir à um lugar. Preciso que me libere o seu motorista.
- Para onde vai? - perguntou Sebastian.
- Por ora é melhor que o senhor não saiba.
- Tudo bem, avisarei a Clark para te ajudar nesta empreitada. - Sebastian apontou a mão em direção a porta. - Agora, por favor, saiam, preciso ficar só.
A dupla assentiu, e sem hesitar saíram do escritório.
- Sebastian é um homem realmente estranho, muda de humor mais rápido que a minha ex-mulher. - disse Caller enquanto examinava os bolsos. - Mas que diabos, não consigo encontrar a minha carteira.
- Não se preocupe, eu te pago um croissant com café no caminho. - Harrison quase não consegue esconder o seu sorriso de culpa.
- Que seja... - Caller parou de mexer nos bolsos. - E à propósito, onde vamos?
- Eu preciso rever um velho amigo, ele é muito famoso no submundo por ter informações sobre tudo, a fonte de conhecimento dele é inesgotável. Chamam ele de "Thoth".
- Thoth? - perguntou o confuso legista.
- Sim. É o seu codinome. Thoth é o deus egípcio do conhecimento e da luz, ele faz jus ao nome.
- Sobre o que você vai falar com ele?
- Antes de fazer o próximo interrogatório preciso saber mais sobre esses agiotas, a W&W, tenho que deixar o ambiente à meu favor. Está pronto, meu caro amigo John Caller?
- Isso está me lembrando dos velhos romances policiais britânicos. - Caller ajeitou o colarinho do terno e aumentou o ritmo dos passos para alcançar o detetive.
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O assassino da invalidez
Mystère / ThrillerO detetive David Harrison é chamado para um caso intrigante, uma senhora afetada por diversas doenças que levaram-na à uma lamentável cadeira de rodas é encontrada morta em seu leito, a justificativa mais óbvia proposta pelos familiares para esse ac...