Um despertador ensurdecedor, com uma campainha irritante, acordara Rafael. Sentia dores de cabeça, sua garganta estava seca, o mundo parecia girar. Eram oito da manhã de uma segunda e ao seu lado dormia uma negra, linda, como se tivesse saído do cinema e pousado direto em sua cama. Seu nome era Camila, Rafael a conheceu ontem, no acampamento organizado pelos seus amigos Rodrigo e Caio. A luz do sol refletia no espelho e cegou seus olhos por um instante, enquanto o despertador e sua campainha infernal continua a tocar. Foi com muita dificuldade, e superando as adversidades, ainda tateando, conseguiu desligar o maldito despertador.
Se espreguiçou e proferiu:
- Bom dia, Capão! Bom dia, Vietnã! Que noite foi essa? Parece que me dei bem - disse isso passando a mão direita sobre cavanhaque, olhando pra Camila.
Foi à cozinha pegar café pra tentar amenizar a secura da garganta, mas notou que só havia café do dia anterior. Jogou fora e preparou um fresco, forte e amargo, do jeito que gostava. Tomou um gole e comeu algumas bolachas murchas. Voltou ao quarto e notou que Camila havia acordado e o esperava.
- Bom dia, gostosão. Disse com a voz mais sexy que conseguiu fazer.
- Ótimo dia!
E mordendo os lábios, observando aquela escultura negra, que mais parecia ter sido talhada durante séculos até alcançar a perfeição. Pulou em cima dela e a agarrou, apertado-a contra o peito. Apertava Camila com um misto de raiva e delicadeza. Sentia a densidade do corpo dela pesando sobre o seu, sentia o latejar do ar bombeado por um coração que não era o dele. O desejo se apaziguou e dormiram mais ou poucos antes de Camila ir embora e Rafael ir trabalhar.
Rafael era um negro alto, cerca de 1,90m. Tinha pouco mais de 23 anos, cabelo black power, dentes branquíssimos e bonito. Era o garanhão do bairro. Gabava-se de ter conquistado a maioria das mulheres do bairro pobre do Capão Redondo, região sul de São Paulo. Brandia para os ventos:
- Peguei todas. Sou o Sultão do Capão.
Morava com sua mãe numa casa simples. Perdera o pai vítima de um câncer no estômago, ainda menino. Sua mãe era aposentada, muito velha, cheia de rugas e conservava dentro destas um pouco de poeira; mas era uma velhinha adorável, amada por todo o Capão. Rafael trabalha numa metalúrgica no centro de São Paulo. Gostava de lá, mas estava estudando para cursar engenharia na UFACB. Já havia feito o vestibular duas vezes, e dizia à mãe:
- Mãe, esse ano eu passo. Certeza. Aí vou poder tirar a gente daqui. Irei desbravar novos mares, preciso aumentar meu leque de mulheres, as daqui já são passado pra mim.
- Tome juízo, menino - retrucava a mãe com ar de repreensão e afeto.
- Mas, véia, tenho que aproveitar, afinal, o preto está na moda. Seu sorriso reluzia e iluminava toda a casa.
Deu um beijo na mãe foi trabalhar.
No ponto de ônibus encontrou Rodrigo e Caio, os mesmos que organizaram o acampamento do final de semana.
- E aí, mano, como foi com a Camila, aquele puta avião?, disse sedento de curiosidade.
Foi foda, brown. Metemos à noite toda. E quando acordamos pela manhã deu tempo de dar mais uma, só pra despedir - transluzia orgulho do seu próprio feito.
- Porra, não posso reclamar, disse Caio com soberba, peguei a Gilmara.
- Mentira! Conta outra. Aquela testemunha de Jeová? A santinha?, indagou Rafael.
- Essa mesma, respondeu Caio, dando de ombros. Ao mesmo tempo que dizia isso, o ônibus havia acabado de parar no ponto.
- Veja como são as coisas, disse Rafael entrando no ônibus, esses dias mesmos ela bateu lá na minha porta, querendo infundir a palavra de Deus na minha cabeça. Eu disse que não acreditava naquilo, que era tudo invenção do homem. Que isso, pra mim, é uma espécie de muleta emocional, uma terceirização dos problemas. E ela respondeu que eu não iria pro céu, e blá, blá, blá. Ainda tentei contornar a situação dando uma cantada nela, mas acabei incitando mais a fera, e ela completou: "Sou de família, não sou suas negas e nem dada aos seus mundanismos. Que Deus perdoe seus pecados."
- Pois é, mano, até as santas têm desejos pecaminosos, retrucou Caio.
Rodrigo, que até então estava em silêncio, respondeu:
- Tudo fachada. Todos têm desejos, mas algumas religiões suprimem eles dos seus fiéis. Eles deviam entender que os amantes da vida não são pecadores. Isso, sim! Disse orgulhoso pela sua frase de efeito.
E foram os três amigos durante o percurso contando suas proezas e estórias do acampamento.
Naquele dia, Rafael trabalhou até mais tarde, pois havia muito serviço. Já de saída, Rodrigo e Caio o interpelaram:
- Não vem?
- Não, quero dar uma adiantada no trampo de amanhã e fazer um extra pro final do mês.
- Então já vamos. Até amanhã, às 12h, vê se não se atrasa.
- De novo, completou Caio.
- Ah, parem de reclamar, suas velhas. Até amanhã.
Rafael terminou já eram quase 23h. Arrumou suas coisas e partiu, cansado, depois de mais de 12hrs de trabalho. Estava garoando, o que ratificava o apelido de São Paulo. Entrou no ônibus, que fazia o trajeto em pouco mais de 1h até sua, e dormiu. Quando acordou, notou que havia passado um ponto do que sempre desce. Decidiu fazer o trajeto a pé.
- Dez minutos até minha casa, disse de si para si.
Decidiu fazer o caminho mais rápido para sua casa, era um beco mal iluminado, sem pavimentação e meio lamacento por causa da garoa. Logo quando saía do beco, deu de cara uma viatura da polícia. Eram três homens de roupa escura, vestindo coletes e boina. O usual para a polícia. Chamaram-no:
- Ei, negrinho, de onde vem e aonde vai?, disse o mais baixo dos três.
Nesse momento Rafael sentiu medo, muito medo. Sua boca salivava, suas mãos suavam e seu olhos lacrimejaram. Sentiu que algo ruim estava por vir.
- Vindo do serviço; indo pra minha casa, se... - essa última palavra quase não saiu, pigarreou e conseguiu proferi-las - senhor.
- Sei que você tava fazendo merda. Não mente pra gente. - disse o mais alto e corpulento entre eles. Rafael notou que ele tinha apenas dois dedos na mão: o polegar e o indicador. O mais baixo entre eles fez um gesto qualquer para o outro policial que até então não havia se movido. Este era de estatura mediana e gordo, com um grande bigode. foi até a viatura, conferiu uma prancheta e fez um gesto de afirmação com a cabeça.
- Entra aqui, tição, disse o mais corpulento entre eles e apontava com seus dois dedos para a viatura, e lembravam a forma de um revolver apontado.
Rafael entrou no carro e argumentou que não tinha feito nada, que era trabalhador, estava estudando, que aquilo era algum tipo de mal entendido. Ainda teve tempo de dizer que era racismo o que faziam com.
- Racismo? Racismo não existe, macaco. A gente só está fazendo nosso serviço: eliminando a sujeira das ruas, retrucou, depois deu gargalha atroz o mais gordo entre eles.
Dias depois, sua mãe recebe a notícia de que o corpo de Rafael foi encontrado há cerca de 2km de casa, numa vala que desembocava numa num riozinho sujo, cheio de vermes, baratas e ratazanas.
Sua mãe até hoje chora. Seus amigos até hoje choram por um amigo que se foi tão cedo. No fina das contas, Rafael foi só mais que virou estatística pro Estado.