É difícil viver com uma inquilina em sua mente.
Por um tempo – muito tempo – decidi ignorá-la. Se ela se sentiu no direito de fazer da minha cabeça sua casa, também me senti no direito de negar sua existência. Pensei que poderíamos viver em harmonia, cada uma em seu canto, vivendo nossas vidas em um sistema de comensalismo. Não dizem os cientistas que usamos apenas 10% de nossos cérebros? Ela poderia ficar com os 90%. Mas ela é um tanto gananciosa, um tanto carente e outros tantos atrevida. Vivíamos em um sistema de parasitismo.
Eu gosto de chamá-la de An. Pronuncio como o apelido de Anne, em inglês. Não sei bem o porquê. Achei que o nome estrangeiro geraria distanciamento, mais uma comprovação de que não somos iguais, que não viemos do mesmo lugar. Mas, a verdade é que somos a mesma coisa.
Não sei se pertenço a ela.
Se ela pertence a mim.
Se nos pertencemos.
Se me pertenço.
Temos dividido o mesmo espaço há tanto tempo que já não sei mais onde começo e onde ela termina.
An é como uma inquilina inesperada que prometera ficar por apenas alguns dias e, agora, já tem sua própria gaveta no armário e um lado favorito na cama. Este tipo de visita não consegue viver independentemente, precisa estar com você o tempo todo, perguntando o que você está fazendo e, às vezes, tentando ajudar em algumas tarefas. É exaustivo. Queria poder despejá-la, mas não consigo. Afinal, para onde ela iria? Sinto-me responsável por An, de um jeito pouco saudável.
Acho que poderia tolerar sua longa estadia se An tivesse sua própria vida, ou se ela tivesse algum hobby que a mantivesse ocupada por algumas horas. Contudo, é como se a televisão em seu quarto apenas sintonizasse em minha vida. Então, ela gosta de me acompanhar nas situações mais diversas. Desde momentos importantes como entrevistas de emprego, até momentos banais, como idas ao banco.
An observa cada suspiro, cada movimento, cada passo. Se você conseguisse falar com ela, tenho certeza que ela diria que faz isso por amor. Talvez ela realmente me ame, de seu jeito torto e fragilizado, e se preocupa comigo. Sei que diz para si mesma que faz tudo isso para me proteger. Me proteger do mundo, da vergonha, das decepções e das tristezas. Mas, An, como posso me proteger de você? Como posso me defender de alguém que tem as chaves de todas as portas da minha mente?
Pensando bem, An foi o meu relacionamento mais duradouro até agora. Desde meus amores platônicos ou fracassados, até os amigos que ficaram para trás e os que continuam ao meu lado, foi a única que nunca realmente me abandonou. Perceber isso me assusta e me conforta, se é que isso é possível. Mesmo que sua existência faça minhas mãos tremerem, meu coração palpitar e minha respiração parecer insuficiente. Talvez esses sejam os sintomas de alguém apaixonado, não é mesmo? Não tenho certeza.
Mas, de todas as coisas, An é, principalmente, previsível. À essa altura de sua estadia, a conheço tão bem quanto conheço a mim mesma. Sei o que a agita, o que a conforta, o que a apavora e o que a enfurece. Posso não saber controlá-la, mas sei conviver com ela. E não me entenda mal, pois isso não é uma coisa boa. Muitas vezes, conviver com An significa deixar de viver comigo mesma. Significa dar um passo para trás para que ela não dê dois passos para frente. Significa abrir mão, evitar, esconder, e, pouquíssimas vezes, reconciliar. Já abri mão de tanta coisa por An que nem sei se isso é uma acusação ou uma carta de amor.
Tentei criar uma casa agradável para nós duas, na esperança de que isso a deixasse mais calma. A enchi de histórias, filmes, paz e tranquilidade. Mas An é uma criaturinha agitada, que pensa e sente demais. Logo se imagina naquelas situações, vive aquelas vidas e chora por amores perdidos que nunca sequer teve. É difícil ignorá-la nesses momentos. Carrego nossa casa em nossos ombros, logo, seus lamentos são todos ditos ao pé do meu ouvido. Qualquer agitação faz meus joelhos fraquejarem.
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Inquilina
Short StoryUma ode à ansiedade. Esta história foi escrita para o 8º desafio do Grupo Caneta Tinteiro intitulado "Clube da Música". Inspirada na música "Every breath you take", do The Police (1983)